Haroldo: homenino-sem-fim

Quando li Haroldo pela primeira vez minha cabeça e meu coração entraram em cheque-mate. Percebi que estava diante de um poeta que chutava o pau da barraca da poesia.  E chutava com classe: barrocamente. O livro era Xadrez de  Estrelas, de 1979.

Eu lera, aqui e ali, que um certo pós-moderno invadia a literatura e as artes a partir da arquitetura. (Mais tarde, com a leitura de seu O Arco Íris Branco, de 2000) descobrira que o Haroldo não gostava da expressão pós-modernidade por encerrar o fim das utopias. E ele sempre fora um amante das utopias).

Morreu deixando utopias no ar e um sentimento de que, sem poesia estamos ficando mais subdesenvolvidos, como me confidenciou um amigo por e-mail.

Ao  lado de seu irmão Augusto ("siamesmos / uni- / somos / outro") e de Décio Pignatari lançou a única poesia que o Brasil fez com cara própria e com cara de  exportação: a Poesia Concreta. O mais são destaques individuais que não chegam a configurar um movimento. A Poesia Concreta é mais significativa e mais importante que o nosso Modernismo de 1922, segundo muitos estudiosos, entre eles, João Cabral de Melo Neto.

Haroldo fez poesia, traduziu obras escritas em  línguas orientais e ocidentais, vivas ou mortas, contemporâneas, antigas ou medievas. Deu-nos Homero e Maiakóvski, Dante e Joyce, Pound e o Eclesiastes, entre tantos.

Na ensaística, revelou-nos um Macunaíma até então desconhecido. Gerou polêmica, mas acabou vencendo  pela qualidade de seu  olhar livremente antropofágico.  Foi capaz de ler José de Alencar sem as viseiras (pseudo)marxistas de (pseudo)leitores-engagées: revelou-nos Iracema à luz da vertente jakobson-bakhtiniana e fez-nos ver uma arquitextura do texto que de tão óbvia surpreendeu a todos  como exótica.

Viu Euclides para além do sertão-jornalístico, do sertão-geográfico, do sertão-ideológico. Viu campos novos neste sertão euclidiano da linguagem e revelou, com Augusto, que  Guimarães Rosa podia ser mallarmaico, para  além dos neologismos (trans)regionalistas que (des)inventara.

Buscou na tradição  oriental os resquícios da Poesia enquanto concisão e rigor. Introduziu-nos no universo pictórico da escrita chinesa e enfatizou a importância do cineasta Eisenstein na  concepção da função poética.

Escreveu Galáxias,  pura poesia  neobarroca, da mais densa e sedutora beleza. Caetano  Veloso, seduzido e sedutor, musicou-lhe um fragmento. Atrevido e ousado como  o mestre poeta, gravou a canção em disco e depois inseriu-a no show. Agradou sempre, como Haroldo gostava que gostassem do ele  gostava.

Participou de filmes de Júlio Bressane lendo anarquicamente Galáxias em meio aos delírios de Brás Cubas, ou  barrocamente declamando Gregório de Matos em Os Sermões.

Enquanto professor do curso de Semiótica no Programa de Pós-Graduação da PUC-São Paulo era amado pelos  alunos e colegas. Jamais sua vasta erudição o impediu de ser uma pessoa simples e atenciosa. Digo mais: uma pessoa afetiva.

Os prêmios que recebeu no país e no exterior, o reconhecimento de seu trabalho na poesia, na tradução, na ensaística, fizeram dele um intelectual imprescindível à compreensão de nossa poesia e da literatura nacional como um todo.

Mesmo quando discorria sobre Mallarmé ou Joyce, Gomringer ou Hoelderlin, seu foco estava  voltado para a revelação de um Sousândrade, um Kilkerry, um Oswald, um Leminski.

Haroldo de Campos deixa conosco uma obra que precisa ser lida e relida a fim de mantermos a maturidade que  nos imputou a Poesia Concreta. A fim de que nunca mais  regredirmos ao estágio das antas modernistas ou dos bem-comportados copistas subdesenvolvidos.
 

  Amador Ribeiro Neto

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