Canjica com amendoim

Eu ainda era criança, mas me lembro como se fosse hoje.

Aconteceu no "pequenino Miraí", cidade onde nasceu minha querida mãe.

Cidade famosa por uma razão maior, Miraí, simpática e simples, tinha e ainda tem, como seu maior feito, ter sido a terra natal do saudoso Ataulpho Alves.

Ataulpho, que se bem me lembro, desde que de lá saiu, só retornou uma vez e por apenas um final de semana. Justamente nesta época, estava eu lá em férias.

A cidade engalanou-se para receber seu filho maior. Aquela que ele havia colocado no mapa. Expressão usada, à época, quando alguém, ou algum destaque, tinha origem em cidades de pouco crescimento.

Me permitam aqui um aparte: meu pai discorda veementemente desta versão. Alega, jocosamente, que Miraí só está no mapa por minha mãe ter sido funcionária do IBGE. Conta ele que num descuido do pessoal da cartografia, ela de passagem, como quem nada quer, com a pontinha de uma pena nanquim, praticou mágica, e pronto, estava feito, a partir de então, uma "pintinha" surgiu no mapa... lá estava Miraí.

Pois foi nesta Miraí, nestas férias e ao lado de nada menos que Ataulpho Alves, que aprendi o quanto é gostosa uma canjica branca com amendoim torrado e moído!

Estávamos todos em casa de "tia Acidália", assim chamada por todos nós meninos e meninas da família, mas que, na realidade, era prima de mamãe.

Nesta casa, trabalhava Maria, uma negra gorda de um carinho e simpatia sem par.

Ninguém jamais me deu um sorriso como o de Maria. Branco, claro, aberto, franco... um sorriso que diz... gosto de você!

Além de todas as qualidades, Maria era nada menos que a fada do fogão de
lenha.

Sabedor de seus dotes e com os olhos maiores que a vontade, prontamente arranjei a desculpa...

- Tia Acidália! Que tal oferecer ao nosso convidado aquela canjica com amendoim que a Maria faz?

Mais que prontamente ouvi o grito...

- MARIA! ...MANDA O MOLEQUE NA VENDA BUSCAR CANJICA!

Lá se foi o moleque, correndo como sempre, porta afora. Nunca soube o nome daquele menino. Todos se referiam ao coitado daquela forma.

Como todo moleque de cidade de interior, lá foi pelo caminho. Chutou lata, jogou bola de gude, correu atrás de papagaio, trepou em goiabeira, implicou com um bêbado, jogou jogo de botão e... algumas horas depois, estava de volta. Entregou a minha "Tia" um saco de papel todo amassado... era a canjica.

- MARIA! ...MANDA O MOLEQUE NO SÍTIO BUSCAR LEITE FRESCO!

Correndo porta afora lá se foi o moleque... bola de meia, pião, perna de pau, pedrada em passarinho, corrida do touro cortando caminho pelo pasto e pronto... já no fim do entardecer, "lá evem ele com a vasia de leite!"

Canjica de molho na água pra amolecer, isso leva tempo. Só depois é que vai pro leite que deve ser fervido e esfriar. Quando a canjica estiver bem macia é que novamente vai ao fogo com o leite e o açúcar cristal. Canjica naquele mesmo dia, nem pensar, não ficaria pronta!

- "MARIA! ...AMANHÃ, BEM CEDIM, OCÊ MANDA ESSE MOLEQUE LÁ NA CASA DA CUMADE FILÓ. DIZ PRELA QUE EU MANDEI BUSCÁ UM AMENDOIM TORRADO, DAQUELE QUE SÓ ELA SABE TORRÁ".

Naquela noite, da canjica com amendoim, ficou só a vontade. Mas todo mal tem sua compensação e durante toda a noite foi uma cantoria só. Os seresteiros, juntos com Ataulpho, se puseram em festa. E foi festa de música da boa!

Dia seguinte, quando acordei, já não vi o moleque.

Perguntei por ele e Maria respondeu.

- "Uai, foi buscá o minduim, senão num dá tempo de aprontá a canjica pro seu Ataulpho!"

Passou a manhã, veio a tardinha, o povo da cantoria começou a voltar para mais um "dedim" de prosa.

Violões, sanfonas... teve até fanfarra... e nada do moleque, só lá pelas seis e meia ele volta. O raio do moleque estava todo ralado!

- Que foi isso moleque?

- Foi a égua tia Maria. A danada me ajogô no chão e arrastô inté dispôs da portera di inhô Sebastião. Mai preocurpe não, oia o minduim aqui.

O saco era sangue só! Não prestou nem pra jogar aos porcos.

Mais um dia se foi e a canjica que é bom... nada!

Dia seguinte, Maria, por iniciativa própria foi buscar o amendoim... não tinha torrado. Ela mesma torrou.

Com é sabido de todos, depois de torrado tem que esperar esfriar antes de moer e lá se foi a manhã.

- "DONA ACIDÁLIA! Ô DONA ACIDÁLIA! Avisa praquele moço cantô que a jardineira tá pronta. Já vai-se embora pra Cataguazes."

Lá se foi Ataulpho. Com ele foi também a cantoria. O pobre coitado, deve ter ficado de boca aguada. Não provou nem um tiquinho da canjica com amendoim!

Fim de semana acabou e na segunda-feira de tarde Maria me chama...

- "Marcos!...Ocê aceita um prato de canjica, daquela que eu faço?"

Sentado no quintal, pernas cruzadas, uma sobre a outra feito um buda, na sombra da mangueira, lá estava eu, menino feliz, prato de ágata mão, me deliciando de canjica com amendoim torrado.

Comi o primeiro prato como quem tem muita fome, mas só no fim do segundo prato é que percebi, lá na cozinha, de umbigo protegido por seu avental branco feito nuvem, Maria estava de barriga colada no seu fogão de lenha. Uma voz limpa e clara, solta e doce e cantava... cantava...

"Eu daria tudo que eu tivesse,
Pra voltar aos dias de criança.
Eu não sei pra que a gente cresce,
Se não sai da gente essa lembrança.

Aos domingos missa na matriz
Da cidadezinha onde eu nasci.
Ai meu Deus eu era tão feliz,
No meu pequenino Miraí.

Que saudade da professorinha!
Que me ensinou o bê a bá.
Onde andará Mariazinha?
Meu primeiro amor, onde andará?

Eu igual a toda meninada,
Quanta travessura que eu fazia.
Jogo de botão pela calçada.
Eu era feliz e não sabia!
Eu era feliz e não sabia!..."

Daquele tempo, Tia Acidália, Maria, a canjica, o moleque, tudo ainda é real, até a música do Ataulpho é real, apenas o Ataulpho se foi.

Marcos Woyames de Albuquerque

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