Retornando hoje de uma caminhada no Jardim Botânico, onde meu marido e eu optamos por ir, resolvemos prolongar o passeio e descansar num quiosque situado na Lagoa que, além de oferecer diversão para a garotada com cavalinhos de plástico e outros brinquedos, é o lugar ideal para se ter ampla visão de suas margens patinando água aos pés do Corcovado. Assim, lá chegando, nos sentamos e bebemos água de coco com gosto de a melhor maravilha do Rio.
Estava eu ali brincando a bebida entre os lábios e admirando a beleza dos deuses e deusas que, com a permissão do Cristo Redentor, se fantasiam na ciclovia em simples mortais, quando quase engasguei-me canudo adentro com os patos pretos.
Não acreditava no que via e precisei cutucar meu marido para que ele me sacudisse daquela visão e me dissesse que tudo o que eu sentia olhando aquela cena era delírio. Mas, para o meu espanto, tal não aconteceu. Aliás, para me atordoar mais, não somente a sua sensação foi a mesma, como também a das duas senhoras que estavam a conversar perto de nós e que, tendo ouvido o meu comentário, sorriram e não resistiram confirmar o fato, isto é, que os patos pretos pareciam aquilo mesmo que eu estava a dizer.
Em quantidade acima de quarenta, os patos pretos, de cabeças erguidas e de peitos estufados, sobressaíam-se numa estrutura metálica que existe na Lagoa e que é onde os remadores, com seus barcos, dão a largada para o percurso. Até aí, nada demais, você dirá, mas todos, sem exceção, voltados para uma mesma direção reverenciando o sol? O que acha disso? E acerca de cada um a mais que ali pousava tomar a mesma posição? Sacudia-se para acomodar as penas e ajeitava-se no espaço que, apesar de não ser pequeno, não era grande o suficiente para que uma disputa qualquer não se iniciasse. Porém, nenhuma rixa acontecia. Polidamente, como se ali as aves estampassem etiqueta de comercial, sempre elas davam um jeito para se caber mais um, teoria prontamente provada, ante os meus olhos estupefatos, com um seguinte e mais outro seguinte farfalhar de asas.
Entretanto, ainda não lhe disse a sensação que tive ao vê-las e que foi compartilhada por (posso provar para quem quiser) mais três pessoas, o que me salva de você dizer ter eu uma imaginação mais propícia para o além, apesar de, confesso, ter uma queda para o acolá. Achei que, talvez, o título da crônica, A Beatitude dos Patos Pretos, tivesse dado alguma pista, mas, pensando bem, depois que falei da postura deles reverenciando o sol, cheguei à conclusão de que o recado que eu verdadeiramente queria dar, repousa incompleto. E é por isto que lhe faço ler mais um parágrafo.
A verdade é que os patos pretos me lembraram (como ao meu marido e às duas senhoras, é bom reforçar) os mensageiros daquele filme A Cidade dos Anjos. Neste filme, há uma parte onde os mensageiros, vestidos todos de preto e com uma grande capa, se reúnem ao pôr-do-sol numa praia, local onde, voltados para o nosso astro-rei, se reenergizam e alcançam infinita paz. Que os patos pretos não são mensageiros, só se revê-los, todos, sem estarem voltados para o pôr-do-sol, tendo ao fundo não o Cristo Redentor, mas a Meg Ryan, protagonista do filme!
Rosane Villela