Era danado, o Zé Joaquim! Sempre que podia, lá ia marcar passo bailado no terreiro, chapéu preto de aba larga na cabeça, o tronco muito direito, polegares enfiados nas cavas do colete, batendo o pé ora para a direita ora para a esquerda, conforme o ritmo do adufe e o gemer da concertina.
Era sempre com ele que bailava a moçoila mais faceira, de saia rodada, com duas barras de veludo ao fundo; aventalinho de seda, bolsinha presa à cintura, lenço colorido de pontas cruzadas na nuca e atadas no cimo da cabeça.
De faces trigueiras e boca rosada como uma papoila.
O Zé Joaquim tinha fama de as levar a todas, e de as espreitar quando elas levavam à fonte os cântaros areados, em equilíbrio perfeito, sobre a rodilha entretecida de fitas.
De vez em quando era vê-lo nas festas e romarias, de varapau em punho, soltando impropérios, desafiando à briga os demais moços, por dá aquela palha.
Se a minha bisavó viúva, Maria Pires Rodrigues, sabia destas proezas, talvez sorrisse, quando se escondia na sala a fazer as contas aos taleigos de milho; aos moios de trigo, aos almudes de azeite, enquanto as criadas, na larga cozinha, tratavam do cozido, da miga de batata, fervendo no bojo das panelas de ferro assentes sobre o seu tripé, e do caldeiro com os desperdícios que se mantinha suspenso de um gancho de ferro lá dos confins insondáveis da chaminé enegrecida, onde a vianda para os cevados parecia cozinhar eternamente.
O valente do Zé Joaquim andava de candeias às avessas com o toiro mourisco, que não engraçava com o criado, talvez recordado de alguma aguilhoada que lhe deixasse em tempos cicatriz nas ilhargas.
Uma tarde, ao apanhar o moço distraído, prendendo os arreios das vacas que recolhiam ao cabanal, meteu-lhe a cornadura entre pernas e jogou com ele como uma criança com a pela, atirando-o várias vezes de encontro ao tecto e pisoando-o de seguida.
O homem nem teve tempo de gritar.
Da janela, as minhas avós assistiram pasmadas, e gritaram por ajuda.
O Zé Joaquim esteve à morte durante vários dias, delirando
... e com que delirava ele?
Que a patroa era forreta; que mais guardava do que oferecia; que preferia deixar apodrecer as maçãs de Inverno no sótão a dá-las aos criados que andavam todo o Inverno atrás do arado, guiando as juntas de bois, no arroteio da terra para receber as sementes no fim do Inverno.
Que as salgadeiras estavam cheias mas umas bocas mereciam mais que outras; que as talhas de barro abarrotavam de chouriços e palaios conservados no azeite, mas que a patroa trazia sempre o molho das chaves à cintura e o farnel era de pão com azeitonas, às vezes umas migas de leite, quando pariam as cabras, e sempre de cara fechada, que ninguém lhe vira os dentes.
Do que conversava nas tabernas da vila, à volta do adro da igreja, enquanto aguardava a saída das moças, ninguém sabia.
Mas que até àquele recanto tinha chegado a levedura da revolta contra o poder absoluto, isso era certo.
Ora na madrugada de dia 5 de Outubro, estava-se em 1910, ainda pelo lusco-fusco, soaram os sinos!
Era a melhor das músicas para os ouvidos do Zé Joaquim, mais que açoitados pelos raios e coriscos que a boca que a ti Maria Rodrigues, minha bisavó vetusta e empinada no seu traje de lavradeira, proferia sem descanso.
Ai Zé!
Tomado de tanto entusiasmo, saltou da cama para fora e apareceu aos saltos no terreiro, com a braguilha desabotoada no traseiro, gritando
— Viva a Republica!
— Viva a Republica!
O gáudio era geral.
A ele, talvez não lhe tenha durado muito a satisfação, pois a minha bisavó continuou a comandar casa e criados com punho de ferro, eles morreram e ela sobreviveu para contar a história, muito depois dos noventa... mas a mim, serviu-me!
Tendo ficado pobre por muitas viragens e desvarios da vida, tornei-me de liberal em democrata e em revolucionária, sacudi de mim todos os genes de burguesia que porventura me tenham ficado a infectar o sangue e militei na oposição até à libertação de Abril, ao fim do jugo salazarista, da censura opressora, até hoje
... que é necessária uma nova revolta que derrube os galos emplumados que nos cobrem de fezes do alto dos poleiros em que ingenuamente os colocámos!
Maria Petronilho
Portugal