Gervásio morava no bairro da Penha, na cidade do Rio de Janeiro,
em um sobradinho pequeno e simples de subúrbio com tudo o que costuma
ter essas casas suburbanas: varandinha, portão de ferro baixinho
e um alpendre. Havia um corredor comprido que ia terminar no quintal repleto
de samambaias e avencas, um cachorro vira-lata e uma bicicleta velha...
Sua casa era realmente bem afastada das outras casas do bairro e era rodeada
de árvores e plantas, como se desejasse resistir à modernização
do crescente vilarejo. Gervásio era muito tranqüilo, sempre
risonho e bonachão. Ele trabalhava com o que gostava de fazer e
era conhecido como o consertador de coisas, um faz-de-tudo do bairro.
Era sempre visto carregando de tudo para sua casa, desde relógios,
torradeiras, televisores, antenas e até mesmo bonecas quebradas.
Trabalhava muito e constantemente até altas horas, pois de longe
se avistava uma luz acesa e sempre era possível escutar uma música
distante que se misturava com as batidas de martelo, esmeril ligado e outras
ferramentas de impacto sonoro. Porém ele possuía um hábito
do qual não abria mão.
Todo fim de tarde ia se encontrar com o amigo Rochinha no bar da esquina
para tomar sua água com gás.
É... o Gervásio não gostava de bebidas alcoólicas!
Ficava ali todas as tardes até chegar a hora do jantar, quando seguia
para sua casa com um sorriso de gato Félix.
O Rochinha estava sempre muito interessado nas conversas do Gervásio,
pois ele era muito contundente e sábio em tudo que
dizia.
- Acho que o Gervásio deve ler muito para saber de todas essas
estórias, notícias e novidades, pensava o Rochinha.
Fico intrigado em saber mais sobre sua vida, da qual ele pouco
fala, exceto pelas estórias noturnas... Gervásio despertava
curiosidade em todos.
Mas, o que o Rochinha mais gostava era de ouvir as estórias
das noites de verão que o Gervásio contava.
A mente do Rochinha viajava nessas horas e o fato dele notar a luz
acesa e ouvir música até tarde na casa de Gervásio
aumentava a cada dia sua curiosidade.
Havia uma estória que o Gervásio vivia repetindo. Era
a estória de uma mulher linda que aparecia em seu alpendre nas noites
enluaradas e quentes, que usava uma estola de pele clara e muito leve e
dançava ao som de uma orquestra de violinos. Ela era dona dos mais
belos olhos azuis que ele já havia visto. Rochinha franzia a sobrancelha
e ficava cismado ao ouvir tudo isso.
- Uma noite dessas vou espiar para confirmar essa estória,
pensava consigo mesmo. O pior é que o Gervásio nem bebe!
Ficava a maquinar o Rochinha.
E assim ele fez. Uma dessas noites bem quentes, que só
o subúrbio do Rio de Janeiro e o Mário de Andrade conhecem,
depois que o Gervásio havia saído do bar há mais de
duas horas, lá foi o Rochinha espionar a casa dele.
Pela janela da sala ele vislumbrou um vulto de mulher. Embora
achasse que não devia, não se conteve e foi bater na porta.
Uma mulher de meia idade atendeu.
- Pois não? Perguntou a mulher meio desconfiada.
- Boa noite, ele disse e depois perguntou:
- O Gervásio está?
Ela respondeu que ele estava tomando banho e perguntou quem era
ele?
- Sou amigo dele, sou o Rochinha. Ele respondeu.
- Ah! O amigo do bar. Ela retrucou.
A partir daí, começaram a conversar animadamente
como se fossem velhos amigos, mas ela não o convidou a entrar.
Então, o Rochinha já se sentindo familiar começou
a perguntar sobre a estória da tal mulher e dos violinos, embora
sentindo
que estava cometendo uma “meia” traição.
A mulher sorriu levemente e o brilho de seus olhos se intensificou.
E ela disse:
- Esse meu Gervásio é mesmo muito inventivo “seu”
moço, ela disse. O que acontece é que o Gervásio sofre
de insônia e nas noites de verão ele fica imaginando que o
barulho dos carros é o mar, que a nossa gata que pula no alpendre
é a tal dançarina e a orquestra de violinos nada mais é
do que um bando de pernilongos que não dão sossego.
O Rochinha ficou desapontado com a estória, mas prometeu àquela
mulher que não iria contar nada do que tinha ouvido para mais ninguém
e nem mesmo para o amigo Gervásio, para não decepcioná-lo.
E ele saiu vagando pela noite a pensar...
O que deixou o Rochinha mais intrigado – e ele assim permanece
até hoje – é o fato de ter visto pela da porta da sala entreaberta,
três violinos sobre uma cômoda e uma estola de pele branca
suavemente pousada no braço de um sofá antigo...
Outro fato curioso, o cachorro do Gervásio não suportava
gatos e no bairro da Penha, a prefeitura estava sempre pulverizando a área
contra pernilongos!
Insônia no subúrbio carioca tem seu sabor de mistério...
Leila de Barros