Nos
últimos meses, tenho assistido a uma avalanche publicitária
do novo governo em torno do programa Fome Zero.
Não que eu esteja reclamando ou mesmo tenha algo contra essa iniciativa
tão nobre que visa minorar as agruras do povo brasileiro.
Diga-se de passagem, neste grave momento por que passa a nossa sociedade,
onde a cotação das ações do meu e do seu dominam
o mercado da bolsa de valores humanos, atitudes como essa resgatam o esquecido
sentimento de fraternidade, único antídoto existente contra
a virulência da epidemia de egoísmo que se espalhou pelo mundo.
Mas é que eu precisava conferir. Like a Saint Tomé, you know?
Pois bem... Era isso mesmo. Diante de tanta divulgação, senti
uma fome insaciável de confirmar pessoalmente o grau de inanição
desse ensolarado país do futebol e das cestas básicas.
E a solução encontrada foi sair pelas ruas do Brasil de verdade;
não aquele da esplanada dos ministérios, cheio de belas gravatas
presas por douradas bravatas, mas aquele gigante excluído dos contos
de fadas internacionais, editados e publicados pelo G-8, e que hoje morre
à míngua.
Logo na primeira esquina, encontrei um pequeno brasileiro debaixo de uma
marquise, que disparou à queima roupa e me acertou em cheio ao dizer:-
“Moço, me ajuda a comprar um caderno?”.
Atônito, quedei-me completamente perplexo; diria até consternado.
Aquele anjo do asfalto necessitava de comida ou de caderno? Será
que as estatísticas governamentais estavam erradas ou esse tipo
de análise correspondia a um fruto insosso da miopia que atinge
o poder?
Desnorteado, devolvi-lhe a pergunta, tentando aparentar uma certeza que
eu não tinha.
– “Já sei! Você está estudando e precisa de uma ajuda
pra comprar material escolar, certo?”.
– “Né isso não moço”, respondeu ele. “É que
eu nunca tive um caderno, e me deu vontade de aprender a ler e escrever.
O senhor tem jeito de que escreve bem. Não quer me ensinar?”.
Logo eu que tinha tanta dificuldade de chorar nas aulas de teatro da escola,
naquele momento, por mais que tentasse, não conseguia debelar a
emoção que teimava em querer escapar dos meus olhos.
Mas o que era aquilo? Quer dizer então que a fome não
era apenas de alimento, mas também de educação?
Curiosamente, naquela hora, quem me dizia aquilo não eram as estatísticas
do governo, mas sim um dos seus números; obviamente não era
um número frio de um relatório timbrado e divulgado na mídia,
mas um número quente, ou melhor, de sangue quente, um ser humano;
não era também um número amadurecido, desses que já
sofreram a extração de uma raiz quadrada ou mesmo de um logaritmo,
mas o importante é que não era um número imaginário,
mas real, e que não apenas tinha sonhos, mas também crises
de esperança; além disso, se de um lado era um número
que possuía um irrisório valor relativo na tabuada social
vigente, por outro lado continha o maior valor absoluto dentre todos existentes:
– a capacidade única, pessoal e intransferível de ser um
cidadão.
Buscando ganhar tempo e recompor as idéias, repliquei: “– Ah! Mas
isso é bom. Muito bom mesmo. Aprender a ler e escrever, estudar,
ter uma profissão, ganhar dinheiro...”.
Minha análise, mais uma vez equivocada, foi interrompida por um
sorriso brejeiro e perspicaz, que como uma lua em quarto crescente brotou
na noite escura daquele rostinho infantil, que aparentava não ter
mais do que 09 anos.
– “Você não acerta uma né? Na verdade, eu só
queria escrever pra minha mãe que ficou lá no Ceará.
Tô com muita saudade dela. Eu e meus dois irmãos menores”.
Desmoronei.
– “Sabe moço, meu pai até que é bom pra gente. Mas
ele fica trabalhando o dia todo, e só chega de noite. É que
ele não tem emprego fichado e aí, fica fazendo bico de ajudante
de pedreiro. E nós tem medo de ficar sozinho no barraco. Lá
é perigoso de noite. Tem muito tiroteio. E a bala perdida, se pegar
na gente, mata. É o que nosso pai fala todo dia antes de sair”.
Agonizei.
– “Agora, se minha mãe estivesse aqui, a gente não ia ter
nem um pingo de medo. Outro dia, meu irmãozinho quase morreu de
febre, porque meu pai num conseguiu uma consulta com o doutô. Se
não fosse Dona Zinha, lá da comunidade, que arrumou uns remédios,
ele não tinha salvado. Era problema de verme. Se minha mãe
estivesse aqui, ela fazia um chá e curava ele na hora. Ela tem muito
conhecimento de plantas”.
Morri de vez.
Renasci e respirei fundo. Instintivamente olhava para cima, tentando encontrar
naquele céu de meio-dia, uma força superior com a qual pudesse
suportar aquele dolorido flash da vida real.
Em apenas alguns minutos, para deleite da angústia e da sua irmã
gêmea, a desesperança, a lista de prioridades do Fome Zero
havia crescido assustadoramente.
Fome de alimento; Fome de educação; Fome de moradia; Fome
de saúde; Fome de trabalho; Fome de segurança; Fome de inclusão
social; Fome de afeto. Fome de carinho; Fome de amor.
Chamei o garoto e, como bons amigos, entramos numa papelaria do setor comercial
onde estávamos. Compramos caderno, lápis e caneta e sentâmo-nos
num gramado próximo.
Apesar de toda a tristeza que transbordava da minh’alma, enquanto ele,
com um brilho inesquecível no olhar, me ditava a tão desejada
carta para sua mãezinha, a cada palavra escrita, eu percebia que
aos poucos surgia dentro de mim, ainda que timidamente, um novo tipo de
fome: – a Fome de Ação e Cidadania. Uma fome que provoca
espasmos na consciência despertando a pessoa do sonho letal da inatividade,
e que somente será saciada quando todos os outros tipos de fome
estiverem zerados.
Emmanuel Chácara Sales