"Eu é um outro". Foi com falas como essa que Arthur Rimbaud
redirecionou os caminhos da poesia e ainda hoje se mantém como um
dos autores mais modernos que existem.
Ser "outro" é uma das vontades humanas mais arraigadas e antigas,
é também a nossa grande impossibilidade. Rimbaud foi um caçador
que se tocaiou, durante algum tempo, na tentativa de conseguir um
poema que fosse além do seu corpo, que produzisse mais que alma,
morte ou poesia. Ele queria um poema impossível. Desistiu muito
jovem da empreitada, mas o que produziu deixou marcas indeléveis
na história da literatura.
Nunca saberemos exatamente como o outro nos enxerga. Tudo que vem do
"outro" é filtrado pelo "eu". Por mais que as palavras de Rimbaud
nos dêem argumentos para vôos imaginários, nos
permitindo uma reflexão sobre nossas múltiplas faces,
nossas diversas escolhas, estaremos sempre na jaula de nós
mesmos. O mais próximo que nos vemos, como os outros nos vêem,
é no contrário dos espelhos. Não ajuda muito este
rascunho invertido da realidade.
Depois de Rimbaud tentar caçar o impossível e subverter
o pensamento da época em que viveu, surge Clarice Lispector,
colocando mais mistério na fala do poeta, quando ela, aparentemente,
o resume: "Eu é".
Se com Rimbaud nos transferimos para o outro, seja para não
sermos nós mesmos, seja para nos olharmos de fora por algum
tempo, num jogo quase infantil de imaginação ou num
daqueles exercícios místicos de "viagem fora do corpo", com
Clarice nos aceitamos, nos incorporamos do "é", esta grande
palavra, que apesar de formada por uma letra, carrega uma gama de
significados quase inexpugnável.
Por isso, Clarice considerava a palavra "é" como a mais
importante da nossa língua, pois se trata de uma palavra que
nos contém, que nos sentencia à não-fuga, à
não-tentativa de buscarmos horizontes além das fronteiras
do nosso corpo ou espírito.
Clarice era também uma caçadora, como Rimbaud, mas diferente
dele, ela caçava outro impossível: a aceitação
plena do que somos, a essência humana sem passado ou futuro,
ela queria mesmo era se apossar do "é da coisa", queria ser
uma pessoa na completude do presente, sem espaços vazios. Clarice
queria ser sólida.
A obras destes caçadores do impossível são vastas
e permitem, a cada leitura, novas interpretações, novos atalhos
transformadores.
São dois autores rotulados de enigmáticos porque inventaram
uma literatura enquanto tentavam entender o humano. São antagônicos
e se completam: Arthur Rimbaud fugindo pra longe de si mesmo, gritando:
"Eu é um outro"; Clarice Lispector se despedindo do lado de
fora e segredando a cada um dos seus leitores: "Eu é."
Rubens da Cunha