Autores x Leitores

Enquanto leio um  artigo no qual, entre outras coisas, é reafirmada a  necessidade de uma boa leitura para tornar-se um escritor, lembrei-me de uma  situação bem engraçada, para não dizer embaraçosa, que se desenrolou com essa mãe que vos escreve e seu poderoso e adolescente filho.
Quando o referido rebento entrou na fase da adolescência a nossa comunicação ficou bem truncada, para não confessar aqui que ficou quase impossível de ser praticada.
Passando a freqüentar mais assiduamente um ambiente propício para a sua idade, eis que se me apresenta um filho que desaprendeu a usar as palavras, ou melhor, desaprendeu a se comunicar com o restante do planeta.
Procurei ficar mais atenta, então, a que tipo de leitura, música, atividade esportiva, enfim, a qualquer coisa que fizesse parte do universo que ele passou a freqüentar. Acreditem, havia chegado a minha hora de conhecer na pele tudo aquilo que ouvia dos outros pais; a dificuldade de comunicação entre as gerações. Conheci, ou pelo menos tive uma vaga ilusão de ter conhecido, os símbolos que eram usados entre os adolescentes do novo milênio – como se no milênio anterior não existisse essa tal de discrepância na comunicação entre gerações diferentes, onde eu, vejam que ironia, estava do lado de lá e meus pais do lado que hoje cabe a mim defender.
Até entendo que os tais símbolos de que falo não deixam de ser um meio de comunicação, porém, restrito ao universo deles. As frases suprimidas a um quase resmungo, ou a uma expressão banalizada e de conteúdo inimaginável de informações; porém, só entre eles.
As músicas ouvidas tinham a mesma  batida rítmica, qualquer que fosse a escolhida. Umas poucas, quando se conseguia entender suas letras entre gritos e sons irreconhecíveis, aproveitavam a não tão parca atenção dos adolescentes para realçar problemas de caráter político-sócio-cultural-econômico, numa tentativa esquecida tão logo surgisse uma outra letra falando de uma tal “égua pocotó”.
As atividades esportivas não foram dizimadas, porém – ah, esses poréns! – eram atribuídas aos que gostavam de ficar nas arquibancadas, se vangloriando de serem torcedores mais afoitos quando seu time ou seu grupo perdia alguma peleja – eles que nem me ouçam pronunciar essa palavra.
As leituras eram restritas às revistas (?) que traziam letras das músicas (?) mais badaladas – sem nenhuma conotação preconceituosa, a não ser pela mais completa falta de uma linguagem decente e harmoniosa – , à alguns livretos de piadas tortas e tortuosas e à um dicionário (?) que traduzia as mais recentes inovações de gírias usadas nos meios.
Não havia mais o que ser observado, já que todos somos sabedores do caminho final de quem permanece nessa trilha desconhecida pelos seus seguidores.
Dentro de nossa casa havia  um jogo proporcionado por mim. Eu provocava meu filho com perguntas comuns ao nosso dia-a-dia e tudo o que obtinha como resposta era algo parecido com: “sei lá, pô... é estranhão falar disso... mas  tá tudo em cima”.
E eu ficava tentando buscar um esclarecimento, o mínimo que fosse, na sua nova forma de se expressar. E nada. Confesso que uma vez até escrevi as respostas dele, após mais uma tentativa de diálogo. Fiz isso para ver se lendo de trás para frente eu conseguiria concatenar as idéias por ele expressadas. Mais uma vez, nada.
Mas – adoro esses mas – um dia, muito inocentemente, ele me deu a grande oportunidade. Já cansado das minhas tentativas infrutíferas de mantermos um diálogo, ele dispara com essa idéia:
– “Aí, coroa, vou sacar um dicionário pra você se atualizar nas paradas” – meu Deus!!! Então há salvação. Ele conseguiu, ao menos, concluir uma frase inteira e eu consegui entender a mensagem.
Não pestanejei. Corri para o jornaleiro mais próximo da nossa casa e comprei gibi, revista de palavras cruzadas, livros de poesias, de crônicas, de contos, de piadas, uma dessas revistas com letras de músicas e outras diversas, quase todos os jornais disponíveis e juntei a isso tudo alguns livros que eu tenho, inclusive os de culinária. Coloquei tudo numa caixa e embalei como presente. Por sobre a caixa prendi um minidicionário e um cartão com os seguintes dizeres:
“Meu mais precioso presente de Deus,
não posso dar tudo o que  desejo dar para você, mas não quero que  no futuro seus lábios pronunciem que eu nem tentei fazer com que você se interessasse de novo pelo bom gosto de saber se expressar. Você pretende ser um grande engenheiro, mas tento por todos os meios descobrir de que forma você conseguirá vencer muitos obstáculos sem nem ao menos conhecer um pedacinho da sua língua pátria e de saber o quanto somos privilegiados por termos a oportunidade de conhecê-la. Procurei diversificar ao máximo o tipo de leitura, para não interferir no seu gosto pessoal. Mas se todos esses argumentos não forem suficientemente fortes para te convencer a saber usufruir de tão precioso bem, aí vai um recadinho: Pô, cara, se toca aí... Num tô te entendendo... tá dando uma de mané?... qualé xará?... Tu tá vacilando com as letras, aí... sem elas tu não tá com nada... olha pra tu, carinha, sente só o drama quando tu não for mais um garotão e sacar que jogou no lixo tudo o que aprendeu nas paradinhas certas. Daí, meu filho, só vai te restar a mediocridade de nem poder se fazer entender. Eu te amo!”
Não sei se isso funcionaria com outros jovens, em outros ambientes, em outras circunstâncias, mas funcionou com meu filho. A diversidade de leitura, de cultura que adquiriu a partir daí, fez com que ele buscasse outras alternativas, até mesmo em relação a sua formação acadêmica, pois tornar-se um engenheiro passou a ser apenas uma das suas opções, uma vez que ele aproveitou a oportunidade de tornar-se um jovem esclarecido em relação a maioria dos fatos que o rodeavam.
Não sou a pessoa mais indicada para tratar de sintaxe, semântica, concordâncias e afins, nem seria essa a minha pretensão, mas hoje bate aqui dentro um quase não disfarçado orgulho ao ver meu filho vencer suas “paradinhas” somente com os bons argumentos de quem não se conformou com a mediocridade.

Márcia Ribeiro

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