Era Uma Vez Um Príncipe

        Se há uma coisa que sempre me aborreceu nas histórias de fadas, é sem sombra de dúvida o papel secundário e enfadonho dos príncipes. Você já reparou que eles só aparecem no final da história? Já reparou como eles são bobões e arrumadinhos? E o beijo, então!? Você já viu beijo mais sem graça do que o do príncipe de história de fada?
        Não sei se por um precoce pendor feminista, ou pela desilusão do primeiro beijo, eliminei da minha vida todo e qualquer príncipe até o dia em que conheci Jorginho Guinle.
        Bem verdade que ele não combinava em nada com a descrição que os livros faziam dos príncipes. Não era alto, esbelto, estúpido, bem-comportado e nunca fora um sapo. Não era chegado a princezinhas igualmente estúpidas e choronas - daquelas tipo Branca de Neve e Cinderela -, que às custas de uma carinha de anjo e de alguns artifícios dignos da histeria freudiana estavam mesmo era à espera de um marido que as bancasse. Não, Jorginho! Se ele tivesse tido a oportunidade de conhecê-las, certamente teria romances com as madrastas! Dificilmente ele sucumbiria aos encantos cor-de-rosa de uma mocinha sonsa, estupidamente burra e sem graça como a Branca de Neve (essa, ele preferiu deixar para um príncipe inglês com cara de vela e cérebro guardado na gaveta da mãe).
        E se Jorginho tivesse tido um caso com a madrasta, certamente o final da história seria outro. Aquele reino insosso teria ganho vida, glamour e sensualidade. Branca de Neve certamente seria banida para um condomínio medíocre, onde passaria as tardes assistindo aos filmes açucarados de Doris Day. O príncipe idiota venderia enceradeiras e passaria os domingos em frente à TV, entupindo-se de cerveja e sonhando com uma loura a entrar pelo buraquinho de uma garrafa.
        No reino de Jorginho e da madrasta ouviria-se jazz e bossa nova e a tv só seria ligada se houvesse alguma coisa que valesse a pena assistir. Em vez das novelas bobocas que arrancavam os suspiros da Branca de Neve, o povo teria o teatro. As peças de Ibsen, Brecht e Eurípides teriam muito mais audiência do que o Big Brother. Em vez da poética fuleira das éguinhas pocotó, o povo beberia as palavras de Noel Rosa, Chico Buarque, Caetano, Ferreira Gullar, João Cabral de Melo Neto, Gil, Cartola, Nélson Cavaquinho e de um milhão de poetas. No rádio, o verdadeiro pagode de Clementina de Jesus e de Dona Ivone Lara substituíria os acordes esganiçados de pagodeiros "belos".
        Mas como as histórias (e a sociedade) têm a péssima mania de escolher a mediocridade, na hora H escolheram os Charles, as Dianas e as Brancas de Neve da vida como ícones da realeza. Porém, como ensinou Freud, as escolhas podem esconder atos falhos. Assim, quando nomearam Jorginho Guinle como "playboy", ironicamente deixaram visível o significado de um verdadeiro príncipe: um menino que brinca.
        Jorginho foi o príncipe que me ensinou que para ser real e valer a pena, a vida deve ser brincada e sorvida até o último suspiro!

Marcia Frazão

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N. E.: Jorge Guinle (5/2/1916) morreu sexta-feira passada, dia 5/3/04, às 4.30 h da madrugada. No sábado, tivemos  — Urhacy Faustino, Leila Míccolis, Cláudia Alencar e Mauro Salles —  um almoço no Copacabana Pálace, construído por seu tio, e cuja história se confunde com a sua própria vida. Ao beijar a mão do médico Otávio Vaz, na saída do hospital, Guinle afirmou: "Eu vou para o céu. É o Copacabana Palace" (para salientarmos a importância da palavra "céu", lembre-se que Jorginho, que estudou Filosofia, declarava-se ateu, epicurista e marxista por influência de uma preceptora alemã cujo irmão teria sido companheiro de Lenin, líder da Revolução Russa). Fomos servidos, inclusive, pelo garção que lhe levou a última refeição. Assim, esta crônica, uma semana depois da morte de JG, é uma espécie de continuação da conversa que tivemos naquela tarde, entre nós quatro, lembrando fatos da vida do nosso "príncipe", como Marcia tão carinhosamente o considerou.

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