Ela estava ali, num canto da copa, há três dias, próxima à porta de entrada. Ganhei de minha mãe que, de tempos em tempos, resolve fazer uma faxina em suas coisas.
O que não interessa a meus irmãos, acaba indo parar em minha casa. E por uma dessas peculiaridades de família, sou eu quem gosta das coisas velhas que meus irmãos descartam.
A
velha Iza tem um jeito curioso de se despedir de suas memórias.
Despacha entre os filhos seus objetos preciosos.
É uma caixa de madeira revestida de plástico creme, parecida
com aqueles toca-discos portáteis da escola, que Dona Berenice levava
para o pátio na hora de tocar o Hino Nacional.
Por alguns instantes, confesso que achei absolutamente exótico receber aquele presente. Foi coisa repentina, reflexo dessa cultura moderninha dos computadores. Talvez por isso tenha deixado perto da porta, para lembrar que a casa contava com um equipamento adicional.
Por sorte, tive uma recaída. De repente, brotou a vontade, aquela comichão conhecida que não experimentava desde os tempos de redação de jornal. Criei coragem, coloquei a caixa sobre a mesa de refeições e abri.
A Remington que pertenceu a meu avô! O cheiro, ah, o cheiro. Como posso ter esquecido deste cheiro?
Roubei
um pedacinho de papel do caderno de minha filha e assumi meu posto. Tração
animal, máquina movida por gente, movida por dedos e mãos.
Movida a barulho. E fui escrevendo:
Aí acabou o papel, e eu estava emocionado demais para roubar outra folha do caderninho de desenhos da Mônica.
Murício Cintrão
Do livro: "O gordinho e a menina de rosa - textos curtos para viajar", Protexto, 2004, PR