Máquina de escrever

            Ela estava ali, num canto da copa, há três dias, próxima à porta de entrada. Ganhei de minha mãe que, de tempos em tempos, resolve fazer uma faxina em suas coisas.

            O que não interessa a meus irmãos, acaba indo parar em minha casa. E por uma dessas peculiaridades de família, sou eu quem gosta das coisas velhas que meus irmãos descartam.

            A velha Iza tem um jeito curioso de se despedir de suas memórias. Despacha entre os filhos seus objetos preciosos.
É uma caixa de madeira revestida de plástico creme, parecida com aqueles toca-discos portáteis da escola, que Dona Berenice levava para o pátio na hora de tocar o Hino Nacional.

            Por alguns instantes, confesso que achei absolutamente exótico receber aquele presente. Foi coisa repentina, reflexo dessa cultura moderninha dos computadores. Talvez por isso tenha deixado perto da porta, para lembrar que a casa contava com um equipamento adicional.

            Por sorte, tive uma recaída. De repente, brotou a vontade, aquela comichão conhecida que não experimentava desde os tempos de redação de jornal. Criei coragem, coloquei a caixa sobre a mesa de refeições e abri.

            A Remington que pertenceu a meu avô! O cheiro, ah, o cheiro. Como posso ter esquecido deste cheiro?

            Roubei um pedacinho de papel do caderno de minha filha e assumi meu posto. Tração animal, máquina movida por gente, movida por dedos e mãos.
Movida a barulho. E fui escrevendo:

            “Estou aqui imitando um observador dahistória (assim mesmo, tudo junto). Escrevo em uma Remington de muitos e mutoos (deixa o erro para a revisão) anos atrás. Experimento a sensação de poder que acompanhou dias e noites dejornalistas (grudou de novo), escritores, escriturários e poetas. Curioso notar como a dureza das teclas combinada com minha falta deprática (vou mal nos espaços) estabelecem uma interessantee (ih, repicou) combinação que dá ritmo lento à criação do text o (hum!). O taquetaquear que residia distante na memória retorna vívido e pungente, batucando antiga melodia rítmica que pensei nunca mais ouvir. Estou ouvindo, sim. Estou ouvindo. E ao som dessa sinfonia mecânica retorno às origens. Teclas escuras para pensamentos incolores. Letras negras para composições coloridas. Curiosa combinação de borrões, remarcações e xzxzxzxzxzxzxzxzx’s que já não existem mais. Você estará lendo este texto em uma folha de papel. Não perceberá as nuanças da folha marcada pela batida decidida destes dedos que não se exercitam há anos. Desculpe. Não resisti a escrever nesta bela máquina de escrever. Ela não faz nada por conta própria. Depende dos comandos de quem escreve. Mas escreve, escreve, escreve imitando o automóvel (ou é o automóvel que imita a máquina de escrever e anda, anda, anda sobre linhas imaginárias de um papel de asfalto pelos textos da cidade?)...”

        Aí acabou o papel, e eu estava emocionado demais para roubar outra folha do caderninho de desenhos da Mônica.

Murício Cintrão

Do livro: "O gordinho e a menina de rosa - textos curtos para viajar", Protexto, 2004, PR

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