Quando nos últimos
meses do ano de 1963 a tubulação de gás da minha rua,
Paissandú, foi para os ares num piscar de olhos, desconfiei que
não vinha boa coisa pela frente. O odor insuportável de gás
putrefato era de tal forma intenso que Vitalina, minha avó,
afirmou categoricamente tratar-se da "catinga do Tinhoso" a anunciar sua
chegada.
Eu, que nunca tinha encarado
o Capeta olho no olho, confesso que de dentro do imaginário realista
mágico dos meus doze anos passei a nutrir uma mórbida curiosidade
quanto a sua aparência. Ao perceber este súbito interesse,
vó Vitalina deu de defumar a rua e os seus buracos com ervas, alho
e sal.
A sua convicção
de que o Pai da Mentira emergeria das profundezas da Terra era tanta que
logo arregimentou algumas amigas, rezadeiras poderosas, para juntas iniciarem
uma vigília na boca do extenso buraco que, como uma serpente infernal,
se dirigia ao imponente Palácio da Guanabara.
Quando o seu plantão
na vigília era interrompido para o almoço, Vitalina aproveitava
a ocasião para me dar maiores esclarecimentos sobre as artimanhas
e nomes adotados pelo Senhor das Trevas, desde que o mundo é mundo.
E foi entre garfadas de bife e batata frita que vim a saber que o tal Coisa-Ruim
se chamou Nero, Calígula, Franco, Mussolini, Hitler, Salazar...
e até Pilatos.
Das artimanhas de Belzebu,
Vitalina narrou o estranho poder que ele tinha de provocar intrigas, delações,
injustiças, pestes e feiúra.
As injustiças, delações
e pestes eu já tinha presenciado nas ventas do buraco: o pai de
minha amiga Vânia, um historiador amante de Marx, foi despedido do
emprego da noite para o dia; o almirante que morava no quinto andar, inimigo
número um das crianças e adolescentes do prédio, foi
eleito síndico numa assembléia muito suspeita; e um surto
de hepatite atingiu quase todos nós.
Sim, eu mesma já
podia sentir na carne os primeiros sinais "visíveis" da devastação
que viria pela frente...Não sei se pelo medo do Rabudo (que a essa
altura eu já não queria conhecer) ou mesmo pela hepatite,
o corpo e a alma amarelaram. E amarelaram tanto que acabaram amarelando
toda a casa.
Meu pai, amante dos discursos
inflamados e fiel defensor dos pobres e oprimidos, deu de falar baixo,
deu de esconder os seus preciosos livros e a sobressaltar-se a cada toque
da campainha.
O gás exalado pelo
buraco da rua acabou chegando ao oitavo andar do prédio e me apresentando
o primeiro suicida, a primeira vítima do Mofento. Se não
tivesse passado quarenta anos, certamente eu ainda saberia o nome do morador
bonito e calado, do 802, e ainda tremeria pela minha transgressão
e bravura de ter roubado o volume Obras Escolhidas de Pablo Neruda, que
solitário jazia no chão, abaixo do corpo a balançar
amarrado ao lustre e marcado por um lacônico bilhete — que a polícia
nunca leu - em que se lia: Confesso Que Vivi.
Quando a rua Paissandu foi
tomada por militares no final de março de 1964, não me surpreendi.
Vitalina já havia me alertado para a chegada do Senhor das Trevas.
Marcia Frazão