Sim, eles são cruéis. Não, espere um pouco, antes de concordar ou discordar da primeira frase deste curto parágrafo, vamos rever um filme:
Cinco homens estão nus, todos juntos. Não se pode ver seus rostos, mas cheiram a medo. Num canto há um cadáver, o corpo arrumado, estendido numa caixa metálica. Seguindo pelo corredor, mais prisioneiros nus. Congela a cena, um retrato. Mais um, a máquina zune e registra. É Carandiru.
Um presídio no coração do Brasil. Tão feio que o implodiram. E sobreviventes foram desfilar suas vidas em outros corredores, atrás de novas grades.
Guarde isso na memória, por favor.
Agora é notório: Bush e sua base governista invadiram o Iraque sem justo motivo. Não havia armas de destruição em massa em território iraquiano. Não, não havia. "Sorry, it was a mistake". O The New York Times equivocou-se também, publicou um pedido de desculpas, sabe como é, não tiveram tempo de verificar se as fontes eram verdadeiras.
Conte-se agora o número de mortos. Sim, os dos jovens soldados americanos, mas também o das crianças iraquianas e seus brinquedos detonados. Registre-se o nome das crianças e de suas mães, o nome dos pais, dos avós. Contem o número de cidadãos da pátria violada.
Contem os barris de petróleo.
Foi e é horrível, mas não podemos fechar os olhos. Não podemos esquecer que a violência e a barbárie não estão somente lá fora. Não podemos esquecer Carandiru, uma centena de mortos em uma noite. Maus tratos, tortura e execuções sumárias, não lá no distante Iraque ou em Guantánamo, mas aqui mesmo, no Brasil.
Sim, NÓS somos cruéis.
Atenção: não quero dizer com isso que o ser humano é só destrutivo, nada disso. É evidente que o ser humano tem um grande potencial amoroso, capaz de ser solidário, de construir e transformar visando o bem comum, capaz até de se sacrificar para que outros sejam salvos, em gestos de genuíno altruísmo. Mas também é fato que o ser humano, em qualquer terra que habite, é capaz de crueldade e destruição, assim como é capaz de amor e solidariedade.
O governo americano atual tem sido atroz em sua política internacional. Tem aterrorizado e matado em nome da proteção à paz. Tem encarcerado em nome da liberdade. Tem usado seu poderio militar para destruir nações soberanas enquanto louva a democracia e toma valiosos recursos naturais (sem rodeios: mente, mata e furta).
No entanto, um garotinho de 4 anos assiste desenho animado no Texas; uma dona de casa da Flórida prepara o almoço; um pai em Chicago passa na escola do filho depois do trabalho; em New York um adolescente beija docemente a namorada, enquanto numa praça de Washington um senhor de idade passeia alegre na companhia de seu cãozinho.
Mesmo que os americanos tivessem eleito Bush (o que duvido muito, pois a eleição de Bush foi um show de incidentes e desorganização), são um povo como nós, sujeitos a manipulação política e propaganda enganosa. Não acreditamos nós, como povo, no caçador de marajás, Collor de Melo? Não esperamos um salvador a cada eleição, acreditando que tudo se resolve com varinha mágica? A política de Bush não representa o povo americano, assim como Collor não nos representou condignamente. Se o povo americano tivesse consciência plena do que acontece, acredito que, em sua maioria, seriam solidários e reivindicariam paz e justiça social.
Não esqueça Carandiru.
Só quando cada um de nós puder assumir responsabilidade pela realidade do país em que vive, o mundo vai poder se tornar um lugar melhor.
Marta Rolim