De início deram-lhe o nome de Ilha dos Ratos; depois passou a Ilha
Fiscal, quando os ratos já eram outros, sob o cuidado da vigilância
aduaneira. Para isso instalou-se na torre central do prédio um poderoso
holofote, capaz de clarear a Baía de Guanabara como à luz do dia.
O que espanta, e mesmo intriga, é que, para sediar a repartição
alfandegária, tenha sido construído um palácio, no mesmo
estilo da Torre de Belém, em Lisboa. E palácio imponente, voltado
para a amplidão da barra, verdadeira jóia arquitetônica
com sentido e significação que naturalmente transcendiam o propósito
aduaneiro.
E foi como Ilha Fiscal que entrou na História do Brasil, servindo de
cenário ao último baile da Monarquia — um baile como não
houve outro, para 5 mil convidados, segundo o registro constante dos jornais
da época. O baile que chegou a ser definido como um novo Festim de Baltazar,
e em que se bebeu e comeu, também dançou, como se a Monarquia,
até então austera e grave, houvesse perdido a cabeça.
Graças a um convite do Almirante Costa Fernandes, andei pelo palácio,
pela ilha, pelos salões, subi à torre, descortinei a baía,
robustecendo em meu espírito a convicção de que Del Vecchio,
interpretando com rigor a intenção de Pedro II, o que fez mesmo,
com aquela torre central, aqueles torreões laterais, aquelas janelas
em ogiva, aqueles vitrais em que a luz se estilhaça, foi a réplica
brasileira da Torre de Belém.
E com essa similitude a mais, além da concordância do estilo arquitetônico:
a Torre de Belém, projetada e construída por Francisco Arruda,
entre 1515 e 1519, foi erguida numa pequena ilha depois unida à margem
do rio, a justante da Praia do Restelo. O estilo é o mesmo. Com a Cruz
de Cristo. Com as ameias.
Com as janelas ogivais. Dominando as águas, como à espera dos
navegantes que viu partir.
Ao fim da visita à Ilha Fiscal, perguntei ao Almirante Costa Fernandes
se sabia por onde tinham corrido as despesas para o último baile da Monarquia.
Diante de sua negativa, pude adiantar ao meu eminente Amigo, com a lembrança
do que li, à pág. 110 do livro Recordando (casos e perfis), de
Max Fleiuss, editado por nosso Instituto Histórico:
— Correu tudo por conta da verba da seca no Ceará!
De onde podemos concluir, a título de consolo, que há males que
vêm de longe. Mas logo acrescentamos, como corretivo, que o famoso baile
há de ter ajudado, e muito, no ocaso da Monarquia. De fato, seis dias
depois, Deodoro, a cavalo, tirava o boné, proclamando a República...
A Ilha Fiscal é quase um navio, com seu palácio voltado para a
amplidão da barra. Obra de Antonio Del Vecchio, em estilo gótico-manuelino,
tem assim raízes genuinamente portuguesas, com algumas semelhanças
dignas de reparo, no confronto natural com a Torre de Belém. Seus salões
— dois grandes e quatro pequenos — oferecem espaço adequado
a uma recepção. E em pleno mar, como convinha a marinheiros.
Josué Montello
Do livro: "Reencontro com meus mestres: poetas e prosadores", ABL,
Col. Austregésilo de Athayde, vol. 16), 2003, RJ