Descoser (e depois tecer sem amarras)


          O que quero dizer é que o mundo não é azul, blue sim, e não por ser outro o idioma, mas pelo blue jeans que muito me agrada já adepto do corpo, assim como o marrom é espirrado das terras áridas do sertão, carrancudo e cruelmente belo, cada rabisco parido pelo rasgo da sede. As cores aluadas deste mundo coadjuvante na arte de amar sem zelo envenenam não só as telas dos artistas embevecidos com a novidade de se descobrirem pintores, engolidores de sonhos, calabouços ambulantes da virilidade da busca. Estivesse somente aí a abertura incógnita da ferida, jamais eu teria me questionado quanto ao lugar no qual repousar sentimentos (noites frias, salas vazias, arranha-céus?). Jamais teria caçado feito bicho faminto a possibilidade de que, bem na verdade, amante da ilusão ganha drinques de graça nos bares e mendiga danças nos bailes, enquanto diverte com o próprio (imaculado) ideal os olhos e lábios de desconhecidos, amargando, mas sem perder a pose; delirando de tanta dor que ninguém reconhece. Palhaço chora enquanto adoece de alegria que não sente e se dana a ressentir. Sonhador ou homem. Não há meio-termo. Não existe meio-tom nesta verdade.

          Recomece daqui: vida . Não desta que compramos diariamente nos jornais e revistas, que enfeitamos com a tecnologia e que trocamos por uma ou outra violência lucrativa; não a que engolimos com dificuldade junto com o feijão e o arroz ou a que invade sem um tanto de cortesia o sexo do outro, como se o desconhecer fosse a maneira mais lógica de chegar ao prazer de viés, a invenção do limite que se perde sem que importe as conseqüências.

          Recomece do dia em que, ainda criança, você viu a primeira cena que o comoveu e o fez chorar sem saber bem do motivo, mesmo tendo consciência de que tudo mudara naquele momento, que os brinquedos já não eram assim tão divertidos e os personagens dos gibis não diziam mais o que te agradava. E, ainda assim, seu coração gracejava ao bater descompassado feito marcha. E pense no dia que você considerou o mais feliz de toda sua existência, até se pegar aceitando que a felicidade é incontável e incomparável, que é sempre melhor tê-la aos sabores da própria vontade dela, aceitá-la aos goles (como ela sempre vem), do que não se permitir experimentar do veneno.

          Depois, muros das cidades pichados não só pela mensagem merecida, mas também pela falta do que fazer de uns e outros que se deliciam ao provocarem guerras, certos de que elas têm explicação. Erro de iniciante , dois tombos e no terceiro você quase aprende e é justamente este quase que o salva de si mesmo, é ele que intercede quando você justifica demais aquilo que não deveria sequer ter sido lembrado. E a pergunta sempre chega: será que parei todas as vezes necessárias para descortinar o olhar do outro sem me ater à impressão de estar me entregando fácil aos bandidos? E pensar que de bandidagem todos nós vivemos e a única diferença está na largura do crime, se ele mortifica somente os próprios sonhos ou também os alheios. E sabemos que roubamos cotidianamente sensações, romances, flertes ou lamentos. Prato de comida? A bebida? Milhões em dinheiro, terras e liberdade! Quem pensa não ser culpado a ponto de se julgar mocinho que se envergonhe do fiasco e se retire do picadeiro, este que revela o enredo da vida, as nossas mazelas e, em dia de mansidão, oferece-nos um pouco de coragem para recitarmos a poesia crua da nossa realidade e sem nos envergonharmos de sermos eternos alunos da contradição.

          Posso convidá-lo para um café, ou um chá se elegantemente preferir, caso contrário: nada diet , pois estou de dieta da dieta e não devo engolir purgatório durante algum tempo. O açúcar da leveza me atrai, tal qual confeito capaz de engordar minha sagacidade e fazer levitar minhas incertezas, fazê-las flutuarem para bem longe. As certezas: idem . Esvaziar-me só fará libertar e eu conseguir lamber o doce na tua boca e que esta seja uma cena de afeto, sem os trâmites de uma geração de sexualidade iludida, capaz de babar chavões a fim de ofender pensando que assim está sendo bacana; capaz de violentar o carinho como se o prazer viesse apenas de um lugar: do lugar nenhum; pronta para abocanhar fetiches que nem sempre valem o preço e que me chamem de arcaica, ultrapassada, démodé, obsoleta e abestalhada! Não me importo e, se quiserem me expulsar do mundo, que seja deste mesmo que penso ser feito uma persona , não por ser outro o idioma, mas pela sonoridade da palavra. E se eu pudesse escolher um presidente, remexeria o baú da vitalidade e de lá arrancaria James Dean ou Antônio, João, José que vira Zé e companheiro de uma vida, padrinho dos filhos de Maria e amante de Paulo. Seja lá quem (ou como) for, que saia sem pudores e me traga flores. De girassóis eu gosto e espero recebê-los dia desses, mas que seja de surpresa. E que venha com a cor desse olho estalado de natureza que se diverte, a visão da veracidade à qual sempre me propus a experimentar, ainda que me fira mais vezes do que cure. Esperarei sentada à janela, relembrando cantigas de ninar, revendo fotografias e flertando com o passado, não por estar me sentindo nostálgica, mas para compreender que a minha história teve começo, que não nasci do adereço do presente, do lugar nenhum da infertilidade, que se tenho nome é porque alguém pensou que eu merecia tê-lo, e se pulso vida é porque isso faz sentido ao ritmo de algum lugar: florestas, que sejam, abertas ao público que deita e olha o céu como se fosse a primeira vez ou guarda seus medos em buracos em torno das árvores mais altas, pensando que ao desejar o topo o ganancioso jamais se atreverá a cortar as raízes da ilusão.

          E se você gritar meu nome: saio correndo, moleca de tudo e saltitando de alegria. E me espere com um abraço porque sou filha parida pela necessidade de aconchego, ainda que alimente incessantemente a máscara cor de carne que explicita a força que nem sempre tenho com a fatalidade de ser não mais do que humana e ter lá meus desacertos.

          Enfim, calango caminhando em busca de um homem adestrado ao qual possa adotar como animal doméstico. A virilidade dos sertões e dos desertos, lugares que nos embevecem com a sede do que dói e deslumbra, assim como o amor, meu amor , e as andanças pelas noites afoitas em uma cidade cinza, sem rabiscos de terra, sem frutos, frutas, saídas e sem blues , samba ou rumba. Sem o bolero batizar a dança que quase é ritual: um passo e te quero, por quê? SIM! E mesmo podendo encostar ao balcão e pedir um copo d'água, por favor! , sertão e deserto: caatinga e miragem. Sinto sede, mas é de não me sentir tão só que espero e se você gritar meu nome saio dançando ao teu encontro e te levo flores no olhar, cores em adorno, a emoção que se transformou em imagem: quadro – aridez, espargir o perfume do gesto que se contém para não machucar enquanto quer bem demais.

          Banzar... Aos bandos nos descobrimos e animados com o sigilo do universo, gargalhamos do desígnio de sermos cruelmente belos, ainda que coloridos aos borrões de insucessos e sucessivos verbos soltos em um desfiar de tempo, nossas cabeças embranquecidas combinam perfeitamente com as rugas que nas nossas caras deslavadas revelam biografias que quase chegamos a viver: sede de passado? , quem diria que não: sede de benquerença , e não mais o blue jeans , mas certamente a declaração: expulsos do mundo por boicotar a infelicidade de não dar cor aos acontecimentos e à vida: submissão negada. O jeito é desaprendermos o esperar e alcançarmos de vez.

 

Carla Dias

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