Liturgias e manias

Ora, venhamos e convenhamos! Já não chega quando ficávamos ouvindo a conversa fiada do Sarney no seu popularíssimo programa intitulado "Conversa ao pé do rádio". Dessas audiências ficou-me um comentário dele referindo-se a certos procedimentos como sendo "liturgia do cargo". E como há liturgias por estes
Brasis!

Certas profissões realmente têm manias, maneirismos, frescuras que seus pupilos fazem questão de ressaltar, a começar pelos médicos e sua caligrafia jurássica. Antigamente, dizia-se que tais garranchos eram cometidos porque os branquelos estudavam, liam, escreviam muito. Ora pois! Se isso fosse verdade teriam calos nas falangetas e caligrafia de dar inveja a Gutenberg. Mas falar da escrita dos doutores é chover no molhado. Há patologias mais interessantes a explorar.

Veja o caso dos economistas. Para eles tudo é o mercado. Se chegam tarde em casa, foi porque o mercado demorou a fechar. Se brigam com a sogra, jogam a culpa no inocente alegando que o mercado ficou nervoso depois que o presidente trocou um cê cedilha por dois esses. E se o desempenho conjugal vai de mal a pior, alegam que o mercado anda volúvel porque Sadam apareceu na Casa Branca com um penteado rastafari.

Nem é preciso lembrá-los da liturgia de certos funcionários públicos. Essa vem dos tempos do império. Aposto que você já foi atendido em alguma repartição por uma funcionária com migalhas de empadinha delicadamente espalhadas pelo buço —fora o hálito de palmito e uma lasca de azeitona verde no canino esquerdo. Se ao menos ela nos perguntasse se estamos servidos... Mas é assim mesmo: cor, mulher e manias não se discute. Bico calado, senão ela te manda ao guichê adjacente, que já fechou e só abre depois do ponto facultativo.

Um dos casos mais dignos de nota é o dos "artistas" — com aspas mesmo — da TV. Se o sujeito está de manga comprida logo arregaça, apóia o cotovelo no microfone e exibe algum Rolex, ainda que seja de pirita, o ouro dos trouxas. Se o pavão toca violão, pode apostar que vai ter mais anéis que sua esposa quando vai a algum casamento chique. Se for alguma novata buscando um lugar ao sol, ou à cama do produtor, preste atenção nas bochechas dela. Estão sempre tremelicando, com câimbra, de tanto manter aquele sorriso de: — Mãe, tive meu primeiro múltiplo!

Isso sem falar nos vendedores de serviços evangélicos, que misturam santinhos com carnês e aparecem em penca na nossa porta aos brados de: —Aleluia, aleluia, brother! Pagou, levou! Eu preferia os Hare-Krishna com aqueles sininhos —a música sempre me comoveu. E as moças do telemarketing das supostas instituições de caridade, que não se compadecem ao ouvir minhas lamúrias e se negam a me incluir na lista dos necessitados. Só tenho saudades daqueles vendedores de bugigangas que não requeriam nem prática nem habilidade. Hoje você precisa de muita destreza e jogo de cintura para se livrar deles.

Agora, engraçado mesmo foi um advogado que me perguntou quanto eu percebia. Eu respondi que percebia tudo, posto que sou antenado no mundo, ora essa! Assino jornal, TV a cabo, e inclusive mantenho tertúlias diárias com meu vizinho aposentado, que me põe a par de tudo que acontece no bairro. Aí ele, o advogado, não meu vizinho, disse que eu não tinha entendido, chamando-me tacitamente de burro. Depois explicou que queria saber quanto eu ganhava por mês. Eu disse que ganhava tão pouco que nem percebia quando chegava o dia do pagamento.

Na verdade não ganho tão mal, mas se eu desse a letra ao distinto, ele ia querer que eu processasse até minha vizinha louríssima, curvilínea e que nunca tem açúcar, por me fazer manter uma reserva de emergência em casa. Tudo por meros honorários bem mais razoáveis que meu estoque de mascavo, cristal e refinado. Não que houvesse má intenção por parte do doutor. Trata-se da liturgia dele, percebeu?


Alberto Carmo

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