Brancas mãos e negros olhos
Nos meus tempos de louca e airada juventude, de aventuras e delírios, uma pessoa amiga, receosa de que algo de ruim me acontecesse, disse que tudo aquilo não era coisa minha: era obra de uma entidade que vivia perto de mim e que me levava a ser tão trelosa e aventureira. No meu irrecorrível ceticismo, não quis dar atenção ao caso; mas os meus dez por cento supersticiosos começaram a me incomodar e vez por outra eu me pegava olhando por cima do ombro para ver se surpreendia a tal entidade que supostamente estava me jogando nos caminhos da perdição.
Por via das dúvidas, fui então a um lugar onde há gente habilitada para lidar com esse tipo de coisa, sendo recebida por uma mulher muito mais velha do que eu, sábia e maternal, que me esclareceu e aconselhou. Descobri então que a entidade era uma certa Maria Padilha, figura popular nos cultos afro-brasileiros, às vezes identificada com a Pomba-Gira, mulher bonita, doida por homem, com algo de prostituta e feiticeira. Algumas obrigações então me foram impostas para satisfazer os apetites da aparição, principalmente sua sede pelo bom vinho tinto, que lhe presenteei largamente através de muitas garrafas quebradas nas encruzilhadas.
Devo dizer que não entendo nada dessas coisas; apenas faço o que é preciso quando chega a hora de fazer e quem quiser saber mais sobre esse povo encantado pode perguntar ao professor Luiz Assunção, pesquisador desse lado oculto, oculto ele mesmo numa sala da UFRN onde pesquisa e estuda, como os verdadeiros estudiosos, com discrição e em silêncio.
Então o meu caro leitor não imagina a minha surpresa quando, lendo sobre história da Espanha no período medievo dou de cara logo com quem? Com Dona Maria Padilha, ela mesma, em pessoa, carne, osso e história. O livro conta a história de Pedro, conhecido como "o Cruel", filho de Afonso XI de Castela. O rei tinha uma esposa legítima - a mãe de Pedro - e uma amante fértil, que lhe deu vários filhos bastardos, preferidos pelo pai. Aos quinze anos, depois de uma infância obscura e amargurada, Pedro subiu ao trono em 1350 e baniu todos os irmãos, condenando à morte a amante do pai. Quando sua noiva, Branca de Bourbon, chegou da França, desposou-a, passou duas noites com ela e depois desprezou-a, indo em busca da amante, Dona Maria de Padilla, "cuja beleza era tão embriagadora que os cavaleiros da corte bebiam extasiados a água na qual ela tomava banho". Quevedo a descreve : "Era hermosa la Padilla/ Manos blancas e ojos negros/ Causa de muchas desdichas/ Y desculpa de más yerros." Pedro foi mais tarde assassinado por um seu meio-irmão, que se tornou Henrique II de Castela. A partir daí, fui rastrear o que teria Dona Maria de Padilla, amante de Pedro, o Cruel, a ver com a entidade cultuada nas religiões afro-brasileiras.
Encontrei então o excelente livro "Maria Padilha e toda a sua quadrilha: de amante de um rei de Castela a pomba gira de umbanda" (São Paulo, Duas Cidades, 1993) da autoria de Marlyse Meyer, essa pesquisadora incansável que já esteve aqui em Natal várias vezes para palestras e seminários. Ela estabelece, em uma narrativa encantadora, sem perder o rigor da pesquisa, todos os links entre a criatura de verdade e o ser imaterial que andou, ao meu lado, ou melhor, atrás de mim, por uns tempos.
Quer dizer: andou, não. Ainda anda. E o interessante disso tudo é que, com os anos, eu amadureci, mas a criatura não. Como gente encantada que se preza, permanece perene e imutável no tempo-que-não-é-tempo e continua comigo, muito mais calma agora porque cabe a ela todo o álcool que eu não consumo há mais de quinze anos. Hoje já consigo vislumbrá-la quando olho por cima do ombro, especialmente nas noites em que a lua cheia e a brisa convidam à aventura, ou quando uma bela figura de homem se levanta e atravessa o bar, a sala, o restaurante, a rua. No acordo que estabelecemos uma com a outra, finalmente consegumimos viver em paz e é para ela essa crônica de hoje, para Dona Maria Padilha, minha amiga, minha acompanhante, de brancas mãos e negros olhos, com todo o respeito e agradecimento por tudo que me fez, mesmo perigosamente, viver.
Clotilde Tavares