Folhas
No quintal, quando o outono transformava a terra em colchão, eu me deitava e modelava as nuvens com o olhar. Montava cavalos. Desafiava leões. Empinava estrelas. Até que o avental da cerração cobrisse a imaginação. Nessa hora, minha irmã, um ano mais nova, parceira inseparável de folguedos, choramingava. Em meio ao amarelo das folhas que atapetavam o chão, éramos de um verde tenro. Não conseguia existir sozinho. Quando pela primeira vez fui à escola, ela também foi junto. Precisava dela para ser eu mesmo. Formávamos o que o meu pai chamava de Sociedade Secreta da Folhas. Vivíamos encarrapitados em árvores. Sabíamos das estações pela cor das folhas. Ela era pequena, mas cativava pela grandeza do sorriso. Parecia uma caixinha de música ao luar. Um brilho de pingente no olhar. Um dia enfiou no nariz uma miçanga verde do colar da minha mãe. Foi um alvoroço. Os adultos levaram-na às pressas para o hospital. Eu fiquei ali, semifolha caída aos pés do abacateiro, chorando a falta da outra metade. Minha irmã mais velha me chamava para entrar: “já é tarde!”. Eu não escutava. Sem a pequenina, não me conhecia. Deixava de ser árvore e me tornava humano. Perdia a leveza da folhagem. Porém, bastava ouvir de novo seu riso inconfundível, e logo a claridade da alegria inundava a escuridão do medo. Até hoje minha irmã sorri a vida. Absorve as dores no alvo algodão do sorriso. Fomos separados pela distância dos descaminhos que a vida impõe. Longe dela, meu rosto quase se transformou em caricatura. A caricatura é a gagueira da face. Com ela aprendi a soletrar-me. Dela herdei essa irresistível atração pelas caminhadas ao ar livre. Ainda hoje me sinto folha embalada pelo vento da saudade.
Emmanuel Chácara Sales