PENSAR É TRANSGREDIR
Estou lendo o mais recente livro da escritora Lya Luft, cujo título é o acima. Um dos grandes desafios da contemporaneidade é instigar à reflexão e aprimorar a própria capacidade de pensar os fatos. Pensar o que acontece, pensar atropelado pela velocidade das mudanças da revolução tecno-científica.
Compreender e interligar os acontecimentos. Estar atualizado, mas não como mero repetidor de informações (o gravador já reproduz com fidelidade imbatível), mas como ser pensante, que reflete sobre o que assimila, capaz de questionar e questionar-se.
É um desafio para todos, sem distinções. Periga acabarmos paralisados e acéfalos diante de uma enxurrada de informações. Não seria o cúmulo da tolice? A espécie mais inteligente do planeta com o cérebro fundido pelo excesso de conhecimento. Extintos pelo excesso de saber e pela falta de sabedoria. É engano achar que analfabetos ou pessoas com pouca escolaridade não sofrem a pressão de acompanhar e compreender os novos conhecimentos e ferramentas. Ao contrário, se sentem cada vez mais excluídos. O mundo assumindo formas bizarras, um computador parecendo máquina de alienígenas, talvez coisa do diabo. A tecnologia se tornando mágica e eles à mercê de poderes incompreensíveis. Daí a importância do trabalho que a Prefeitura de Porto Alegre vêm fazendo, disponibilizando centros de informática nos bairros carentes da cidade, propiciando contato com os espaços virtuais, com a rede de comunicação e informação. Conhecer, não estar excluído, é o primeiro passo para se poder refletir sobre.
Mas, por outro lado, recentemente tive uma experiência que me deixou preocupada. Fui numa lan house que tinha acesso a Internet e lá descobri uma gurizada se divertindo. Enquanto lia os meus e-mails , descobri que jogavam Counter Strike . Nem sabia o que era isso, mas com a ajuda dos guris e gurias, uma pergunta discreta aqui, outra ali, aprendi a jogar. Funciona assim: adolescentes se encontram numa lan house , geralmente amigos de escola. Cada um pega um computador, abre o jogo, insere o seu apelido e escolhe se quer ser policial ou terrorista. Todos se encontram dentro do computador, quer dizer, dentro do jogo, num espaço virtual que pode ser um templo maia, um castelo, um edifício, só para citar alguns ambientes (mapas). Os espaços virtuais são bem feitos, gráficos impressionantes e cada vez melhores.
Então os amigos da escola estão lá no templo maia, cada um sendo uma pessoa dentro do jogo, com um corpo virtual. Uma parte do grupo é polícia, usando trajes realistas da polícia moderna e a outra parte é terrorista. Cada grupo tem à disposição armas: faca, pistolas, metralhadoras, granadas, etc. O objetivo da polícia é matar os terroristas ou desarmar a bomba que eles tenham conseguido plantar. Por sua vez, o objetivo dos terroristas é plantar a bomba e matar qualquer policial que se atravesse no caminho. Logo começa o jogo e a moçada grita na sala, "fulano vem me ajudar!", "olha nas costas", "vai, vai, vai!", "ô zicado", "caralho!", risadas e por aí vai. Eles se comunicam dentro e fora do jogo, se tratam pelos apelidos, disparam dentro do templo, escapam de uma emboscada, atiram. A sala da lan house vibra com os berros: a bomba explode na mão da polícia, os terroristas venceram!
Mocinhos e bandidos da era eletrônica.
O jogo exibe sangue, violência e morte, mas não é isso que me preocupa, pelo menos não nesse momento. O que me preocupa é o não pensar, o não refletir.
O jogo é absorvente e a própria gurizada diz que pode viciar. Imaginem alguém jogar várias horas por dia esse game (ou outro de ação). O sujeito simplesmente não pensa, não tem tempo para refletir sobre nada, simplesmente reage aos estímulos. O jogo é ainda mais envolvente pelo fato de haver um encontro real com os amigos, mas um encontro emoldurado pelo jogo, onde as relações pessoais se reduzem ao game . É uma nova forma de alienação em grupo.
Claro que se o jovem curte um pouco do jogo e depois vai ler Lya Luft, Moacyr Scliar, o Veríssimo... a história muda de figura. Vai ler um bom livro, vai esquecer a metralhadora, vai alimentar a mente com idéias, vai descobrir quem ele é e o que quer da vida. Daqui há pouco vai sair, namorar, deixar o mouse de lado e tocar em gente de verdade. Quer dizer, se souber dosar as coisas, se souber valorizar a vida real e deixar a ilusão do templo maia, podemos respirar aliviados.
O que me preocupa é que os jogos estão cada vez mais sofisticados e atraentes.
O Counter Strike , pelo menos nas lan houses, é jogado com fones de ouvido, de modo que o som do jogo é um forte facilitador do envolvimento dos jogadores. Ao mesmo tempo que se joga, pode-se trocar mensagens na tela com os colegas e enviar mensagens faladas em inglês, pré-programadas. Então você está jogando, correndo atrás dos inimigos e ouvindo o som das armas, do rádio com as vozes eletrônicas ( "Go, go, go!" ), da chuva (sim, chove dentro do jogo) e dos colegas gritando na sala. E as vezes ainda trocando uma palavrinha com alguém num chat ou conversando direto na tela do jogo. São muitos estímulos e de repente horas passaram. De repente milhares de horas passaram no decorrer de um ano. Isso acontece como um game que está em voga hoje, entre outros, mas como será com os jogos do futuro?
Ouvi dizer que o próximo passo na evolução dos games será a entrada de vez na realidade virtual. Não apenas os ouvidos e os olhos receberão estímulos da realidade do jogo, mas o corpo inteiro, talvez através de uma roupa especial e acessórios. Essa tecnologia já existe, é só uma questão de tempo ela estar disponível para um número maior de pessoas.
Não quero fazer apologia contra games de ação, eu mesma jogo de vez em quando, até para saber que tecnologia é esta que atrai tantos, mas me pergunto se a juventude, com a evolução ainda maior dos jogos, vai ter tempo e desejo de parar para pensar.
Pensar é transgredir as regras do jogo, o jogo da vida real.
Não me surpreenderia se em breve Matrix estiver logo ali, na lan house da esquina.
Conhecer a máquina e seus recursos, é, ao mesmo tempo, inclusão social e alienação, dependendo do programa que rodamos nela; dependendo do quanto paramos para pensar.
Marta Rolim