A ressaca que o chato te dá                                                                                     

             Não compro uísque de contrabando. É que amo o fígado como a mim mesmo. Certa vez, ia a uma festa, Chez Tarcísio Tavares. Acho que era aniversário do dono da casa. Quando, por acaso, ergui, diante da luz, a garrafa de uísque que comprara para lhe levar de presente, verifiquei, com horror, que o líquido esteja sujo. Sujíssimo. O canalha do falsificador nem se dera ao trabalho de usar água (ou álcool?) limpa. Derramei a gororoba na pia e nunca mais recorri aos muambeiros. Senão posso consumir o meu Old Parr, contento-me (mais preciso seria dizer conformo-me) com Bells. E não corro mais riscos. Quem vai à minha casa, sabe disso. Em compensação, como sou mal educado, não hesito em perguntar aos meus anfitriões sobre a procedência de seu Scotch . Compro-o, nos supermercados, certo de que ali não há espaço para falsificação (ou há? Aí equivale a você comprar dólar falso no banco. Se isto ocorrer, estamos perdidos).

            É claro que, às vezes, você não tem esta intimidade e deve tomar precauções. Uma vez, havia reunião de jornalista em casa de autoridade aqui na Corte. Pois bem. Percebi que o uísque era grosseiramente falsificado. Dava pra notar desde o rótulo sujo até a maneira como tampa fora pregada. Optei pelo vinho.

            Certa noite, fui à casa de um conhecido com a patota que freqüentava. Lá ele serviu Scotch notoriamente fraudado. Não sei se foi o Cláudio ou o Otalício que o advertiam para o fato. Pois bem. Ele não entortou caminho. Foi em frente. A princípio, fez que não ouvira. Depois se limitou a negar a evidência. Batemos em retirada.

            Outra vez, fomos conhecer a adega de um milionário, havia, ali, toda a espécie de uísque importado. Pois bem, quando ele terminou de exibir seu rico estoque, tentou servir-nos um Mansion House . Brasileiro protestou no ato. O novo rico, meio encabulado, foi buscar a bebida de primeiro mundo que nos exibira.

            Outro rico nos convidou para um uísque em sua nova casa. Literalmente e não o percebemos logo. Quando lá chegou, estava ao telefone. Interrompeu a ligação para nos receber, apontar o bar e pedir que escolhêssemos o uísque de nossa preferência. Ficamos com o Old Parr que estava na garrafeira de cima, próxima ao teto. Ele veio, sorridente, e nos perguntou:

            - “Qual uísque vocês escolheram?”

            - “ Old Parr ”, esclarecemos.

            Ele tirou o maravilhoso licor, destilado nas pradarias da Escócia, de seu esconderijo no alto, serviu-nos e o levou de volta.

            Olhamos uns pros outros, dizendo-nos sem palavras: “Quero dizer que é um só mesmo?!” Consumimos nossa dose, alegamos outro compromissos e fomos continuar os trabalhos no ideal.

            Gosto de copos baixos, amplos e pesados que tenham, como devem ser as mulheres, algo em que se segurar, se pegar. Tenho balde de gelo enorme que dá para atender a um batalhão. Paulo José, o Bozó , é que, vendo tudo isso, observou:

             - “Isto é que é vontade de beber e dar de beber”.

            Além da honestidade da bebida, o fundamental é a companhia. Um chato avinagra o melhor champâ, arruína o uísque mais nobre, provoca, dia seguinte, a ressaca mais desesperadora. Dize-me com quem bebes e dir-te-ei que és.

            Outra regra fundamental para o uísque descer redondinho, deixar a gente feliz, consiste em evitar dissensões, polêmicas, teimas. Na mesa que freqüento, todos os crepúsculos, religiosamente, uma regra: não bater boca. Principalmente sobre política. Somente conversamos sobre o que nos aproxima, nos une, jamais sobre que nos afasta, divide. Por isso, podemos varar feroz campanha presidencial, chegar à outra margem, sem uma baixa. A única perda sobre sofrida foi a do Tourinho, um príncipe, uma espécie de Guilherme. Neto na elegância moral, que bateu asas e voou pro Espírito Santo, com saudade do mar. Aí não foi culpa nossa e, sim do Juscelino.

            Amo o uísque, mas não sou um conaisseur. O cara que sorve o sue scotch com a minha sede, achando que a Escócia jamais vai destilar tão divino licor, como se ele fosse acabar e com tantas pedras de gelo, é bom copo.

            Por isso, certa vez, visitando o Lúcio Brasileiro, ele, com carinho fraterno, quis abrir um Royal salute, em minha homenagem. Recusei, alegando que não o merecia. Esoanto , porque sabe que humildade não é o meu forte, quis saber porquê. Expliquei-lhe, exatamente isto, o Royal Salute é pra ser bebido, de joelhos, com uma unção, puro, com um copo d'água ao lado. E nunca profanado com cinco seis pedras de gelo, como é meu mau hábito. Aí trata-se de refresco, garapa de uísque, confesso.

            Quando comecei no jornalismo diário, ia com José Júlio ao armazém do Genésio Queiroz na serra Madureira e, na sala de entrada, filar seu uísque com o Edson, o Ney Rebouças, o Eduardo Leite, às vezes, o Octacílio Colares. A maioria deles se foi. Hoje são apenas saudade. Depois Chez Cláudio Martins onde se reunia outra roda e ele se duelava, todo os sábados, com Otacílio. Ou, então, a mesma patota consumia o honrado uísque do Milton Dias, outro que fez tanta falta, na coronel Ferraz, onde morava vizinho da mãe. E nosso Tarcísio Tavares? Não está rico por conta do scotch que eu, Lúcio Brasileiro que ainda não se homiziara em seu mosteiro à beira mar plantado, Emílio Burlamaqui, Milton Dias, sorvemos à sombra de suas gostosas gargalhadas. É outra companhia que recomenda, que você pode botar no currículo.

            O chato não dá só ressaca, não, dá é cirrose.

Lustosa da Costa

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