A MORTE DE CHICO ESPINHARA
Fazia três dias que bebia num boteco perto do Teatro Santa Izabel.
Fedia à cachaça, à limão e a tripinha assada. A mesa suja de cinzas de cigarros descobria papéis rugados com as últimas poesias que Chico Espinhara escrevera em vida.
Às quatro da matrugada do quarto dia, caminhou rumo à ponte do rio Capibaribe. A sombra de Arnaldo Tobias, o poeta da liberdade, espreitava-o por dentro do nevoeiro.
O salto foi felino e desapareceu nas águas infectadas pelas fábricas e as usinas da Cidade fratricida. Paulo Chaves em sua coluna "Poliedro" do Diário de Pernambuco noticiou: "Morreu Chico Espinhara, o poeta pessimista". A primeira sexta-feira daquele mês, o JC Cultural publicou uma resenha história co poeta suicida e elogiou o conteúdo dos textos do último número do jornal "Lítero-Pessimista", do qual Chico foi fundador.
Na rua 7 de Setembro, perto da Livro 7, os bardos organizaram uma banca com o fim de arrecadar fundos para levantar uma estátua e colocá-la no Beco da Fome, onde Chico e os poetas malditos se reuniam em memoráveis papos líricos e etílicos. Tarefa difícil, pois todas as noites os que administravam a banca compravam, com o arrecadado, cachaça para homenagear a memória de Espinhara. Foram cinco anos de homenagem, todas as noites... Não há poeta no mundo inteiro que haja recebido tanta solidariedade após sua morte.
Finalmente, com verbas públicas conseguidas por iniciativa do escultor Luiz Pessoa, foi esculpida, em refinado bronze, a figura barbada e sombria de Chico Espinhara.
A estátua ficou no meio do Beco, onde todas as madrugadas, em rituais pagãos e eróticos, os bêbados da Boa Vista urinam os pés estáticos
do poeta suicida. De qualquer ângulo se pode ler a frase que ele imortalizou em vida: "... para meu povo irresoluto, o véu, a cova e o luto..."
O concurso literário Chico Espinhara, que começara timidamente organizado pelos poetas do Beco da Fome, hoje extrapolou as fronteiras do Bairro da Boa Vista e tem prestígio internacional. Poetas de todo o mundo participam do certame e, no mês de entrega dos prêmios, uma verdadeira romaria de escritores anônimos e consagrados, jogam coroas de flores nas águas fétidas do rio Capibaribe.
Na data de seu nascimento, as comemorações ultrapassam os limites imaginados. Para o calendário da Secretaria de Turismo de Pernambuco, é a segunda festa em importância, depois do carnaval.
Enquanto isso, numa feira perto da Av. Caxangá, detrás de uma banca de verduras, o poeta Chico Espinhara relembra a surpresa dos médicos no dia em que os bombeiros que estavam de plantão no palácio do governo o tiraram do Capibaribe e o levaram ao pronto-socorro.
Nessa época do ano, o rio tem pouca água, mas os profissionais da saúde não entenderam como Chico não morreu envenenado pelo meio litro que tragou.
Era tanta a vontade que ele tinha de suicidar-se, e era tão esperado seu suicídio pelos poetas que compartilhavam as noites de poesia e de boêmia, que, quando reapareceu pelos bares do Bairro da Boa Vista, todos seguiram pensando que ainda estava morto, e ele está tão seguro que está morto, que nem sequer participa de seu concurso anual de poesias.
Héctor Pellizzi