O oratório
Eu fui criada numa casa em Ipanema, em educação francesa.
Educaçào francesa, queria dizer que até a maneira de pôr os pratos para a refeiçào na mesa, seu acompanhamento, sua retirada, era no requinte francês. Os objetos de adorno da casa, os móveis da sala-de-visitas vindos da França - madeira branca da Europa, folheados a ouro e estofados em Aubusson de Seda - o aparelho de louça dos banquetes e seus cálices, tudo acompanhava o modelo da burguesia francesa.
Na sala-de-visitas, eu ouvia meu pai tocar piano, até a hora em que minha mãe me chamava para dormir e eu então subia para o andar de cima da casa. E lá no andar de cima, tinha um segredo, só meu: era o batuque que as favelas dos Morros do Pavãozinho faziam ao anoitecer.
Naquela época não existiam os edifícios que hoje cobrem Ipanema e eu do terraço do meu quarto, via os morros com suas luzinhas acesas e aquele batuque africano como bandeja para um Céu Banquete de Todas as Raças.
Da minha cama, eu via num pequeno quarto adjacente, a lamparina de grande oratório, com santos de marfim. Eu orava para aquele oratório - um dia permitir que eu fosse para a África, para a India, para a Itália, para a Grécia - levar pessoalmente à lembrança das religiões antigas, a minha devoção de apreciação aos seus cultos milenares.
O Oratório antes de ser vendido, como tudo o mais na casa desfeita, ouviu meu pedido e preparou no Céu o meu passaporte para as viagens.
Numa tarde, sob o céu de azul mais lindo do mundo, numa praça em frente à uma Mesquita, contida pelo guia árabe para eu não me aproximar da Mesquita por ser estrangeira e mulher, ouvi pela voz do Muezim, a chamada para a prece do Islam, no país mulçumano do Marrocos. Eu chorei, porque parte do meu sonho estava começando a se realizar.
O Oratório, testemunha de muitas lágrimas de incompreensão com que a vida me tocara, começava sua função de companheiro espiritual para minha existência.
Ao menos por sua saudade e lembrança.
Clarisse de Oliveira