Junho de Outr'ora
Na delícia perfumada destas noites de junho, tão luzentes d'astros, tão alacres de prazeres, há, no olhar das avós e no olhar das mamães de todos nós, uma névoa de nostalgia. Que sentem elas quando a natureza se oferta cheia de graça e de abandono? Nenhum de nós indaga, nem tempo tem de indagar. Há um jantar elegante com espáduas nuas e casacas, na casa de um titular do Vaticano; a mulher de um alto financeiro espera-nos para não ouvir em qualquer teatro as estrelas viajantes; e talvez, após o teatro, tenhamos um baile do escol, ou — o que é pior! — uma ceia longa com pequenas caras. Como indagar as vagas tristezas silenciosas dos olhos das nossas maiores?
Entretanto, elas estão tristes e talvez não saibam porque — tristes recordações que ficam presas à vida como os farrapos de um nevoeiro, tristes da nostalgia, a ultima vibração do passado que se faz harmonia presente.
— Então, avó, não quererás ver hoje a opereta?
— Em junho, pequeno?
E, pobrezinhas ! elas são, à beira dos costumes desaparecidos, como os espelhos mágicos da saudade. Curvai-vos para os seus olhos. Toda a história antiga do grande mês dos santos invernais, modesta e caseira, desabotoa nas pupilas de cada uma. Olhai a sua face. A melancolia empalidece-a. Senti o seu coração. Chora decerto baixo, em surdina, ignorando porque chora. E as avós e as doces mamães de cinqüenta anos sentem apenas a mente a recordar o mês de junho d'antanho, — mês de fogos e de frio, em que elas passaram crianças a pensar nos brincos, moças a pensar no futuro noivo, mamães a temer desastres para os filhos.
Ah! o mês de junho! Santo Antônio, São João, São Pedro, a Senhora Sant'Anna, a pureza dos lares com muito namoro; muitos foguetes, e bailes, e carás e melado, o encanto do céu todo aceso nas pupilas cegas dos balões soltos! Jesus! Há quanto tempo isso foi...
Certo, com algum esforço, nos lembramos que tivemos uma barraquinha ou uma cesta de fogos, com pistolões e rodinhas. Talvez no-la tivesse mandado o namorado da mana, hoje casado com outra e pai de rapazes já feitos. Era bom? Era como tudo que não volta mais. Em algumas casas as meninas deitavam sortes, enquanto os rapazolas enchiam balões. E era a gota de chumbo quente indicando o futuro e a clara d'ovo ao sereno mostrando se as pequenas partiam para a catedral ou para o cemitério. Como era grave a análise e quanto riso de diamante se desnastrava no ar, sonoroso e meigo ! Depois, entre o baile e a ceia — a ceia tradicional com melado, havia o fogo, o sagrado esplendor do fogo com fogueiras altas para se pular e chuvas de ouro líquido e chispas de rodinhas, e jorros de rojões, e tiros coloridos de pistolões da Pérsia. E a animação, a alegria, mãos que se tocavam, com o pretexto de arrebatar as pistolas, beijos vagos aproveitando a ocasião de amparar uma queda...
Quantas vezes, a cair de sono e carrancudos, fomos ao colo da avozinha!
— Mas, o que temos? O José que não te quer dar as rodinhas ? Espera, meu filho...
E a boa senhora lá ia tirar rodinhas para queimarmos em honra de Santo Antônio, que lhe dera, em moça, um marido, e, em velha, a luz daqueles netos.
Um baile de junho! Ai! como os rapazes daquele tempo o gostavam e aproveitavam! Não havia cartões de convite com termos em inglês, nem "cotilons" e "flirts". Os burgueses convidavam "para uma brincadeira lá em casa". A dona do lar talvez aparecesse de "matinê", mas a ceia era farta, estava-se como na própria casa e a alegria simples parecia rir em cada lábio e em cada olhar. Fora, no quintal ou no jardim, os meninos pintavam; na sala, a valsar, as moças namoravam, e o fogo era dentro e fora de casa, porque havia os fogos de salão, a fonte bouquet, a chuva de ouro, e prata, as pérolas Fontaine, as serpentes voadoras, os fósforos elétricos, as cobrinhas de Faraó, as borboletas e as estrelinhas, rebentando com um leve ruído de seda, estrelas como que feitas de seda luminosa... As borboletas davam um estalo e tinham um verso. Serviam para o namoro, o puro irmão mais velho desse doente "blasé" que se chama o "flirt".
— D. Maria, quer puxar?
— Vá lá.
Um estalo, e saía o verso:
Cupido exige de todos
Um penoso sacrifício
Se quer assim, vamos bem
Mas se não quer, outro ofício.
Gargalhadas... arrufos, inquietações... Havia versinhos intrigantes:
As pessoas que vos amam,
Que só sabem vos gabar,
Dizem que de vós segredos
Já ninguém pode fiar.
Havia indiscretos:
Oh! quanto prazer te deu
Meu coração inflamado!...
Havia até patriotismo nas quadras:
É tão grande pela Pátria
Este vosso fanatismo,
Que não há quem não respeite
O vosso patriotismo.
Essas tolices todas aprendiam as almas no laço perpétuo do casamento!
E, se o aspecto íntimo de junho era tão bom e tão casto, o aspecto lá fora, nas ruas, sob o docel do céu, tinha da maravilha de uma paisagem noturna do Oriente, de uma festa árabe. Ruas inteiras se coagulavam de barraquinhas com lanternas de papel multicor, ajuntam grupos de crianças a soltar busca-pés à baiana, bombas, trepanoleques, zig-zags de chama, súbitos estrondos. Das janelas de muitos prédios, um polvilho perpétuo de favilas, golfavam em arrancos as notas azuis, verdes e rubras, dos pistolões; dos quintais subiam rojões rasgando o veludo do espaço, alguns num longo assobio, para rebentar lá em cima ramalhetes de luzes variegadas. A iluminação normal dos combustores diminuía, de vergonha. Havia quarteirões que, em momentos, davam o aspecto de uma guerra de fantasia ardente, com grandes fogueiras lambendo o casario de reflexos amarelos, iluminações intermitentes de fogos de bengala, ora verdes, ora rubros, e aquele tecido de flor de fogo, de tenda de fogo, de franja de fogo, que se desdobrava, trechos e trechos, de sacada para sacada, como mantos irreais e inconsúteis, de refulgências inauditas.
Para além das casas, no céu sereno, de um azul cor de tinta, riscado pelo arabesco dos foguetes, pelas longas fitas de ouro que se prendiam em laços momentâneos, para escorrer em fitas luzentes, o carnaval dos fogos soltava a iluminação dos balões. Eram dois, eram dez, eram vinte, eram duzentos, eram mil, subindo de todas as direções, caindo alguns atacados de vertigem, galgando as imensidades outros, em fila, em marcha, em desencontro, obedecendo às correntes das variadas camadas de ar, parecendo, a confundir-se com as estrelas, a dança das lanternas dos santos à procura do bem na treva. A noite imensa era silenciosa, mas feita desses silêncios abalados de mil estalos e mil rumores, porque se o céu estalava aos rojões, os barulhos dos fogos viviam na cidade até cantarem os galos e ainda perto do alvorecer as badernas do garotilho corriam aos balões caídos aos gritos de: — "Tasca ! Tasca !" — ou a cantar em coro:
Cai, cai, balão
Aqui na minha mão!
Santos clementes do mês de inverno, muito boa senhora Sant'Anna, cujo nome desde o berço ouvimos para esquecê-lo depois de homens — que saudades! Há quanto tempo foi isso em que sentíamos o frio dos grandes momentos vendo um balão cortar obliquamente a escuridão do firmamento? Há quanto tempo nós tínhamos, como supremo ideal da inocência, que um balão caísse na nossa mão? Hoje, nem mais as crianças pensam em balões senão dirigíveis... O doce mês de Junho antigo com o seu rosário de folguedos simples, acabou, morreu. Há agora outro, um junho bonito, de sobretudo de peles, neurastênico, febril, com surmenagem de pândegas e esnobismo. E como nós somos este junho, por isso não sentimos — oh não! — na delícia perfumada dessas boas noites, tão alacres de prazer, tão brilhantes de astros, o olhar das avós e das pobres mamães cheio da saudade do junho de antanho...
João do Rio
Do Livro: Cinematógrapho: chrônicas cariocas. Porto: Chardron, 1909.