Psicótica musical

Minha vida tem trilha sonora. Não sei quem é o sonoplasta, não contratei nenhum. Nem, ao que eu saiba, fui agraciada pelo Divino com um anjo da guarda DJ.  Seja lá quem, ou o que, for o responsável por essa minha peculiaridade,  canções  sempre me acompanham. Não importa onde eu esteja nem o que faça. Posso estar no supermercado, na rua, no médico, na praia, na fila de banco. Ou na lida diária: enquanto cozinho, ensino dever a menino, arrumo casa, tomo banho, escovo os dentes e... Não, melhor não aprofundar muito a descrição dessas tarefinhas cotidianas, antes que a finesse seja trucidada pelo chulo.

“... Quero ficar no teu corpo feito tatuagem
Que é pra te dar coragem
Pra seguir viagem
Quando a noite vem ...”

Não há como impedir. Elas estão sempre aqui, como som de fundo. E sempre apropriadas ao momento. Edith Piaff, por exemplo, não canta La vie en rose na fila do banco ou do supermercado. Nem minha amada Nina Simone me brinda com sua voz de contralto e seu piano magistral,  interpretando I put a spell on you . Para supermercados, bancos, lojas de departamentos e outros martírios afins a trilha sonora é mesmo o poema de João Cabral de Melo Neto, musicado por Chico, Morte e Vida Severina  : “... É de bom tamanho / nem largo nem fundo / é a parte que te cabe / neste latifúndio ..." 

” ... E também pra me perpetuar em tua escrava
Que você pega, esfrega, nega
Mas não lava ...”

Esse DJ invisível é independente. Sim. Suponha que ele exista. Do contrário, teria de admitir o inimaginável! As canções formariam a mais perfeita das anarquias. cada uma sabendo exatamente quando cumprir seus deveres, sem nunca desrespeitar os direitos da outra de existir e sonorizar, dispensando governo ou norma. Não. Tem algo ou alguém impondo certa ordem nessa alucinação musical! E só pode ser esse sonoplasta e/ou DJ invisível! 

“ ...Quero brincar no teu corpo feito bailarina
Que logo se alucina
Salta e te ilumina
.. Quando a noite vem ...”

Aliás, sujeitinho   muito do  espaçoso. Não me pede licença nem me consulta sobre minhas preferências pessoais. Para ser justa, não lhe posso negar o talento e arrojo. As canções que escolhe nem sempre são óbvias. É preciso que, por vezes, me detenha nelas para esmiuçá-las até perceber onde está o sentido, o elo entre canção e realidade. Pois, como trilha sonora que é, não basta ter melodia linda e letra inspirada. É preciso interatividade.  

E nos músculos exaustos do teu braço
Repousar frouxa, murcha, farta
Morta de cansaço ...”

Incrível   é q ue      o danado sempre acerta. Como sou suscetível ao clima, se acordo alegre num dia cinza-chumbo, depressivo, ele manda um Here comes the sun , com Georde Harrison, antes que o moral escorra ralo abaixo. E manda muitíssimo bem!, o intrometido. Se a melancolia me toma, o som de fundo escolhido é, nada menos, que Eleanor Rigby, dos Beatles. Na guitarra de Stanley Jordan, ele puxa a minha orelha e manda que desvie meu olhar do próprio umbigo e perceba as pessoas a minha volta: " ...  All the lonely people / Where do they all come from? / All the lonely people / Where do they all belong?/ Ah, look at all the lonely people ...". E eu obedeço de pronto. Sem questionamentos.

“... Quero pesar feito cruz nas tuas costas
Que te retalha em postas
Mas no fundo gostas ...”

 Q uando escrevo não é diferente. É pior.  DJ e canções usam e abusam do direito autoconcedido de invadir mente, coração, alma e texto. E ainda chegam acompanhados de imagens. Chove palpite de todo lado. Agora, nesse momento que escrevo, já vejo desenhos, instrumentos, tatuagens, partituras, flutuando à minha volta. Ouço, de forma meio abafada, um burburinho de sons, como se alguém fizesse experimentações a procura - não desta ou daquela música -, mas da canção . Já conheço o processo. Sei que, antes do ponto final, texto, som e imagem estarão de mãos dadas, numa perfeita harmonia entre eles. Então se revelam a mim na totalidade. E eu que me conforme com o resultado. 

”.... Quando a noite vem
Quero ser a cicatriz risonha e corrosiva
Marcada a frio, a ferro e fogo
Em carne viva ...”

 Mas há canções por demais abusadas. Passam dos limites de qualquer insanidade - até da minha, que é mansa. Certamente à revelia desse DJ emocional-musical, ficam como disco arranhado em  minha cabeça, girando e girando. É o caso de Tatuagem, de Chico Buarque de Hollanda e Ruy Guerra. Ouvi-a, outro dia, enquanto caminhava na rua. Escutei apenas um pequeno trecho. Tão rápido, tão fugaz, que sequer pude identificar de onde vinha. Amo a melodia, adoro o poema-letra, sou tiete da intérprete, no caso Elis Regina.  Segui cantarolando bem baixinho, absorta nas lembranças trazidas por ela. Não poderia supor, naquele momento, que estava assinando definitivamente meu próprio laudo psiquiátrico: psicótica musical.

“ ... Corações de mãe
Arpões, sereias e serpentes
Que te rabiscam o corpo todo
Mas não sentes ...”

Preciso de música e poesia como preciso de ar. Mas daí a enlouquecer de vez por causa delas vai uma grande distância. Desde esse dia, Tatuagem está na minha cabeça, soando  ininterruptamente. Tentei de tudo. Ler, escrever, ver tv, gritar menino, discutir com empregada, passear com cachorro, brigar com a vizinha, dormir. Nada. Até nos sonhos surge ela, como tema. Eu confesso. Em meu desespero apelei para o que há de mais vil e repugnante na música.  Aos que gostam, peço perdão. Aos que, como eu, detestam, peço perdão em dobro. Mas ouvi toda sorte de funk, heavy metal, hip-hop, duplas neosertanejas, goespell nacional, new age e até pagode do Belo. Tudo na esperança de exorcizá-la. Em vão. 

“... Quero ficar no teu corpo feito tatuagem
Que é pra te dar coragem
Pra seguir viagem
Quando a noite vem ...”

A gora percebo a razão dessa crônica. É minha última tentativa, desesperada,  de voltar à minha meio-normalidade. Concedendo-lhe espaço, dando-lhe a devida e merecida importância, admitindo seu poder sobre mim, quem sabe a satisfaço e ela me deixa em paz? Mas, se nem assim eu conseguir livrar-me dela, rogo-lhes por solidariedade. Pois sei que passarei uma boa temporada em descanso forçado no spazinho da Praia Vermelha, — que desavisados e preconceituosos insistem em chamar de Pinel. 

” ... E também pra me perpetuar em tua escrava
Que você pega, esfrega, nega
Mas não lava ...”

Ah... E não esqueçam de levar cigarros de presente. Hollywood vermelho, por favor.

Simone Salles

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