O mestre dos ventos

Aparentemente a aula de fonética havia começado...
O professor, homem de meia idade, corpulento e dono de possante voz, iniciava a exposição sobre o papel das vogais e consoantes. Seria mais uma daquelas enfadonhas aulas e a turma se esforçava para ouvir todos aqueles comentários técnicos estéreis, descrevendo cada parte do aparelho fonador.
Havia cartazes explicando o funcionamento da língua, da úvula, do palato, dos lábios, quando os fonemas eram pronunciados.
Nada daquilo parecia fazer o menor sentido: vogais, semivogais, consoantes bilabiais, fricativas, vibrantes, laterais e daí em diante. Para a maioria, no primeiro ano do segundo grau, as preocupações eram bem outras.
Os rapazes pensavam nas meninas e elas neles, o tempo todo. Além disso os esportes, farras e vadiagem eram, é claro, muito mais importantes.
— Mas... a aula — apenas aparentemente — começara.
O talentoso mestre aborrecera de propósito os ouvidos e olhos da jovem assistência.
Após uns bons quinze minutos de considerações insípidas, a poderosa voz do educador grandalhão inundou a sala com pura filosofia e vibrante poesia. Falava como Moisés pleno da visão que tivera no alto do Sinai, exprobrando os hebreus descrentes.
— Vogais, meus caros, são sons livres. Livres como gritos de profunda mágoa e dor. São livres como os pensamentos e as aves...
— Consoantes são sons que se esforçam para impedir a liberdade das vogais.
São todavia necessários, pois os pássaros necessitam de galhos para pousar e ninhos onde possam abrigar-se. Da disputa entre vogais e consoantes surge, portanto, a fala.
— Quando o ar se põe em movimento, encontra passagem entre as montanhas, levanta a poeira do chão, infla as velas dos barcos, extingue ou aviva chamas desprotegidas.
— Apenas as vogais nascem livres, os outros sons lhes têm profunda inveja. Tentam em vão libertar-se, porém só conseguem acompanhá-las, segui-las bem de perto e — se elas permitirem — soar com elas, consonar...
— Por isso são CONSOANTES!
Àquela altura pairava o mais solene e monástico silêncio...
A respiração era lenta, suave, ninguém ousava mover um músculo. Os olhos e ouvidos a princípio apáticos e impacientes, foram sendo, aos poucos, dominados pela força e beleza daquele discurso magistral.
Após breve pausa, suficiente para avaliar o impacto da lição, o professor concluiu, com brilho e serenidade: \" As folhas enchem de ff as vogais do vento \". (Mário Quintana )
— FFFFFÚÚÚÚÚÚÚÚÚFFFÚÚÚÚÚÚFFFFFFFFFÚÚÚÚÚÚÚÚÚÚÚÚÚ...
Emitiu um longo sopro através das mãos, colocadas em forma de concha, à frente da boca.
Repetiu ainda uma vez: FFFFFFFÚÚÚÚÚÚÚÚÚÚÚÚFFFÚÚÚÚFFÚÚÚÚ.
— Entenderam ?
A aula permaneceria para sempre.
O mestre dos ventos sabia mesmo ensinar.

Bruno Rezende Palmieri

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