SOB A MESA DA SALA
Sempre que me sinto só no mundo, somente eu e as ameaças, meus medos, minhas angústias e minhas culpas, vejo-me sob a mesa da sala da casa de meus avós, meu refúgio secreto em momentos difíceis, útero quente de minha mãe; ali eu estava a salvo de tudo; a caixa de madeira, aberta só de dois lados, era suficiente para me preservar de qualquer mal ou perigo. Antiga, a casa transpirava dignidade simples, pelas paredes e pelos móveis quase negros de madeira maciça, porque eram também, agora eu sei, extensões de meus avós. Pés-direitos altos, como não se constroem mais; humilde e sempre limpa, para as vistas e para os pés, a casa exalava muitos cheiros que hoje, só de senti-los, arremessam-me ao passado. No banheiro, de louças, chão e azulejos bem esfregados e lavados todos os dias, a volatilidade do desinfetante leitoso comprado em garrafões de plástico transparente; nas madeiras consistentes dos móveis, a suavidade do óleo de peroba em cujo frasco, pequeno e de vidro âmbar, tinha o desenho de um índio norte-americano que aprendi, nos filmes de far west, a temer, odiar e matar às dezenas e com a consciência bem limpa, porque eles eram bárbaros e diferentes de mim, nos meus devaneios sobre batalhas e perseguições a cavalo; ali, sob a mesa, minha pontaria, meus dois revólveres de prata com cabos de pérola e a carabina de cem tiros eram tão eficientes quanto os meus punhos de aço. Nos tacos, o benzeno da cera de carnaúba que, espalhada por um pesado esfregão, tingia o chão com o corante quase vermelho; em todos os cômodos levitava em harmonia com os demais aromas, o olor do sândalo e do almíscar do pequeno incensório do oratório de vovó – até hoje não entendo como que naquele mínimo espaço cabiam tantos santos, tanta fé e tanto poder. No quintal, quinino para os machucados que eu colecionava, como que para eternizar as lembranças de minhas “artes”, como vovô dizia; louro para o porco aos sábados, açafrão para a galinha aos domingos e hortelã para o chazinho que me faria dormir um sono tão bom e reparador que, no dia seguinte, eu encheria de novo de preocupações e alegrias a casa inteira, o quintal fecundo de plantas e aventuras, e aqueles corações meio cansados, é verdade, mas, bem lá no fundo, tão infantis quanto o meu próprio, porque felicidade era o perfume mágico da juventude eterna que para eles eu exalava – “criança quieta é criança doente” – diziam meus avós, categóricos, com a segurança dos muitos anos vividos, à minha mãe que, às vezes aflita, mas sorridente, constatava surpresa tamanha cumplicidade entre aqueles extremos etários.
E das bocas de meus velhos e saudosos, um sorriso e um hálito gostoso a me dizerem até hoje, e sem palavras, nos momentos em que sofro sem um ombro que me apóie, uma mão que me afague, uma boca que me sorria, um ouvido que só me ouça, ou um ventre que me acolha: “Te amaremos para sempre! Hoje, somos a mesa de tua sala”.
Elcio Domingues