As mariposas no meu quarto

Na manhã de quinta-feira sonhei com meus dentes caindo. Mais de 32, com certeza. Cuspia-os aos montes sobre as mãos em concha. Sisos, caninos e molares. Sem sangue, obturados e com cáries. Sonhos com dentes são normalmente um mau presságio. Morte! Mas, se caírem sobre as mãos, significa a chegada de um filho; alegoria parideira. Na noite de quinta-feira uma mariposa entrou no meu quarto. Ficou pousada sobre a parede amarela me observando. Poemas de Goethe e Yeats me surgiram não sei de onde. Nos mitos açorianos elas são bruxas disfarçadas que entram nas casas pelos buracos das fechaduras para chupar o sangue das crianças. Em famílias com sete filhas, sem meninos, a primeira deve batizar a última com o nome de Benta, sob pena desta virar feiticeira e fazer juras para o capeta. Chamei a mariposa de Benta apenas por amor a contradição. Preferi acreditar noutra tradição. Capturei-a com cuidado e sussurrei meus desejos em seu ouvido. Libertei-a na noite quente para que levasse aos céus o meu pedido. Mariposas são mudas e guardam bem os nossos segredos. Somente Deus, que tudo ouve, poderá recebe-los. Mariposas são quase sempre um mau presságio; mas meu misticismo se encerra na poesia. Deixei isso de lado e segui a minha vida. Na manhã de sexta-feira sonhei com uma ex. Isso significa arrependimento. Mas se eu cuspi-la em minhas mãos não será um filho? Talvez. Na noite do mesmo dia, outra mariposa entrou no meu quarto, desta vez uma bem grande. Pousada sobre a cama ficou ali, observando-me. Parecia querer desafiar minha incredulidade. Capturei-a com cuidado e sussurrei o meu desejo novamente. Libertei-a na noite fria com a certeza de que desta vez a mensagem chegaria. Deixei isso de lado pq meu misticismo se encerra na poesia. Na manhã de sábado, com todos os dentes e sem ninguém ao lado, acordei avermelhado por uma mortal alergia.

Marcelo Niederauer

« Voltar