A lixeira

Meio dia. Sol a pino. Pela Avenida Júlio volto a casa.
Por acaso, naquele terreno baldio, que o dono deixa às moscas e à inveja dos locatários passantes, eu a vejo, ao pé do seu carrinho de serviço. Observo. Pássaros cortam a indefinida direção do seu olhar inerte e há borboletas de visita ao seu cabelo áspero. Carros buzinam, do outro lado, enquanto moleques a cercam, gracejam, riem e partem atrás de uma bola furada. Ela não vê, nem ouve... apenas permanece ali, a tudo alheia... Entre as mãos: alimento . . . Mastiga igual ao cão corn quem reparte suas migalhas - igual na fome, no apetite, igual na indiferença ao sol que nos pinta o rosto de vaidade , rabisca alegria nos últimos verdinhos desta rua. Apressada, almoça a lixeira, com seu calado companheiro, na hora em que as familias se reúnem.
Parece nem pensar nisso, porém ... Aliás, nem haveria tempo : pelo chão há retalhos de mensagens , publicidades, latas, restos de festas e do quotidiano ... trabalho! Pensar, seja em quê for... quando? ... À folga será enorme a cansaço, virá a sono, seguido de trabalho, mais trabalho, ainda trabalho... E a vida vai ficando reduzida ao came, dorme do animal que somos.
E as outras esferas da existência, a informação, o sonho, vão ficando para amanhã, ignorados até um amanhã que poderá nem vir ... Não há mais tempo de ver gente, de ser gente: todos passam, todos seguem... ela também, ao compasso da sua vassoura, na sua ainda inconsciente solidão, pois o calor é muito forte para que possa olhar em torno e ver que, atrás de cada janela, pessoas vivem, convivem, trocam idéias e afeto; para que possa perceber que, enquanto já nem pode ser gente por carência, outros deixam de sê-lo por excesso... Ela ainda agradece a Deus pela pão, por seu emprego honesto, pela companhia do cão. E vai varrendo, ao ritmo de um samba de pratos, talheres e copos, que nem chegou a conhecer, que lhe vem filtrado pelas persianas.
Quantos de nós a vimos? Eu... Você também, quem sabe... Vimos... pensamos... Passamos. Tristeza! Revolta ! Revolta. Diluida na primeira colherada de alimento, ao sorriso dos pais, irmãos, dos filhos... na conversa a respeito dos nossos planos de alegria, mesmo que nunca cheguem a concretizar-se, mas viáveis, cabíveis dentro das nossas condições - um brinquedo, outro carro, vestido novo apenas, domingo na piscina - tantos outros !
É, já , privilégio : ainda podemos sonhar.
E a lixeira? ...

Lia-Rosa Reuse

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