VIVER NO PARAÍSO EXIGE CORAGEM
Diz um amigo meu que o principal motivo de todas as neuroses do homem moderno é o descompasso entre seu ritmo interno e o andamento da vida aqui fora. Segundo ele, as pessoas estão cada vez mais distantes do seu relógio biológico, de suas reais necessidades, do impulso primitivo e indispensável que nos leva em direção ao que é essencial para sermos felizes.
Dormir na hora em que se tem sono, acordar sem despertador, comer quando se tem fome e encontrar no trabalho uma fonte criativa de realização, plenitude e crescimento, quem consegue hoje em dia? Independentes do saldo bancário ou da classe social, temos enfrentado uma batalha diária contra o tempo que parece consumir todas as nossas energias, em atividades e preocupações que, afinal, não têm a menor importância.
Transformados em máquinas produtivas e estressadas, acionamos o piloto automático e “tocamos o barco” — sem perder o controle e, principalmente, sem desafinar o ritmo dessa orquestra barulhenta e grandiloqüente em que se transformou a vida urbana. E como somos muito espertinhos, poupamos as migalhas do suado salário para sermos nós mesmos alguns dias por ano: as férias.
Aí sim. Quando não há congestionamentos nas estradas, excursões enganosas, crianças chorando, sogras mal humoradas, companheiros de viagens chatíssimos, hotel lotado e filas de supermercado, enfim, quando não conseguimos levar para as férias a loucura do dia-a-dia, temos um surpreendente e inesquecível encontro com nosso destino — aquele arquivado a maior parte do tempo; esquecido entre as contas de luz e o relógio de ponto.
Encontrei o meu a um tempo atrás, num pedaço de paraíso escondido ali no litoral de São Paulo. Um quilômetro de praia circundada pela mata Atlântica e aquelas montanhas de um verde forte e aveludado. Resquícios de uma colônia de pescadores onde se preservou o encanto e a simplicidade da antiga arquitetura: a capelinha e a escola pública impecavelmente pintadas de azul e branco, a praça sombreada por amendoeiras, a luz mágica de um sol tropical, areia e mar.
Precavidos, os moradores do local e felizardos veranistas que construíram suas gostosas casas de praia trataram de absorver da urbanidade apenas o que ela tem de positivo. Perto da praia caçambas de lixo reciclável de alumínio instaladas a cada trinta metro garantem uma limpeza inimaginável aos Guarujás da vida. Pensei: modernidade é isso. Misturar-se à natureza e utilizar a tecnologia para poder aproveita-la cada vez mais.
Pra completar, o sol se põe no mar. Desce vagaroso e vermelho, tinge a água de um metálico rosa e azul e depois afunda majestoso, dourando o perfil dos pequenos barcos que, no finalzinho da tarde, vão de encontro às redes lá na saída da baía.
Aos poucos a cabeça dá uma volta de 180 graus. Pés descalços, corpo solto, papos intermináveis com amigos escolhidos, peixe comprado nas barcas, fresquinho, e uma tranqüilidade ameaçadora sussurrando sem parar: “Por que não? Por que não viver dessa maneira o tempo todo? Por que não escolher o caminho harmônico e pacificador que a alma pede?”
Todos fizemos planos. Horas de preguiça, encantamento e reflexão onde nos perguntávamos o que significava, afinal, fazer parte deste rebanho inexpressivo e acabrunhado a que tínhamos nos juntado.Fantasias de produzir um jornalzinho litorâneo, ou, quem sabe, velejar com os turistas. Ou ainda manter um pequeno negócio na vila mais próxima. Naqueles dias nos recusávamos a encarar o fato de que esses delírios (ou será lucidez?) povoam a cabeça de 90% das pessoas que saem de férias.
Pois é. Exatamente como eles, no dia marcado, arrumamos obedientes a nossa bagagem e, covardes e meio envergonhados, tomamos o caminho de volta. No fundo sabíamos que remar contra a maré exige músculos muito bem desenvolvidos. Resta o consolo de ainda não estarmos anestesiados diante de tantas possibilidades. E de treinarmos, de quando em quando, os músculos do coração para, quem sabe um dia, comprarmos soa a passagem de ida em direção ao que chamamos de felicidade.
Carmen Cagno