Sol, Manhã e Passarinha

Tempos difíceis, estes tempos de preto-e-branco. Na imprensa, o nome do presidente, generalizado, restringe a cor da esperança. Tempo de pouco dinheiro, de piruetas e malabarismos. Tempos de insônia e nervosismo.
Nestes tempos de Brasil-novo, sobrou para nós, os que vivemos de salários, pagar as contas do erário e os custos dos planos econômicos: o imposto na fonte custa o dobro do que o Congresso estabeleceu; verduras e frutas, carnes e cereais, detergente e cera - tudo isso que a gente compra em supermercados custa muito mais caro e o nosso ganho ficou congelado aos valores de março... E aí, senhora ministra? E aí, senhor chefe de polícia?
Nestes tempos de frentes frias e roupas pesadas, a naftalina denunciando o pulôver armazenado no baú, estou nervoso. Não consigo equilibrar a necessidade de emitir cheques com a capacidade de deixar na conta os miúdos que sobram do contracheque. Os descontos quase são maiores que a paga. Sem se falar que, do que sobra a título de " líquido de proventos", cerca de cinqüenta e cinco por cento são também impostos que os comerciantes nos cobram e, dizem, nem sempre mandam para o governo.
Dias duros, noites sofridas. A transição dia-noite machuca: inspira solidão e me faz aumentar a conta do telefone. É buscar companhia para uma breve conversa, discutir possibilidades e esperar que se acabe o horário eleitoral gratuito na tevê. Mas solidão mesmo chega por volta de meia-noite. A cama cresce, parece. Um travesseiro vazio sugere a falta de uma companheira, o braço caça, mas não acha, um corpo de curvas suaves e protuberâncias agradáveis, como nádegas fartas e suculentos úberes de mamilos túrgidos, púbis intumescidos e mãos de carícias plenas, a suavidade exclusiva de pele-mulher.
Esperar o sono, esperar acordar na madrugada. Esperar a alvorada, não sonhar com números e preços, tomara! Amanhecer mais tarde, não abrir a cortina. Quando amanhecer, cuidar para não pensar em saldos negativos, em cheques chegantes. Esperança: vem aí setembro, setembro é data-base para negociação de salários, as perdas estão perto de trezentos por cento, mas o governo manda que se dê setenta e sete por cento. Pode? Não pode. É exigir demais da conta. Se conseguirmos cento e ciqüenta por cento, estaremos pegando o boi: patrão não cede de jeuto maneira! Há os que ainda brigam, há os que acham melhor largar de mão. Sei não...
Dor de bolso anestesia coração? Não, não deixa esquecer. Amor também faz doer e dor de amor responde embaixo, corre fina pelo peito, dá calafrio na barriga, dói pesado no baixo ventre; machuca entranhas, pede presença.

 

Sol alto, oito horas. Deixo amanhecer em meus olhos, faço abrir a cortina, escancaro janelas a doze andares. Soa um som, quero ouvir: campanhia da porta, um copo quebrado no apartamento de cima ou a vizinha do lado a espirrar? Não, é na janela. Asas que ruflam, feito quem quer ser ouvido. Dou as boas-vindas a um alado amigo, estirando a mão franciscanamente. A oferenda encontra abrigo e o pequeno voador pousa em mim pezinhos delicados, trinando suavemente como quem conta um caso, uma história bonita.
Duas caixas de som espalham a harmonia da orquestra de Duke Ellington, sons de palhetas em metais e madeira, contrabaixo e piano. Escolho o trinar do pássaro, deixo crescer a sensibilidade e trago ao rosto o pequenino corpo para impingir-lhe um afetuoso beijo na minúscula cabeça.
A luz do sol inunda o quarto, banha a cama desfeita e mancha de luz a escuridão aconchegante, cúmplice do sono. Uma luz maior esparge cores sobre a do sol e um arco-íris apaga todas as imagens por um breve temp. Foi aí que descobri que o passarinho era... Uma passarinha!
Sem pressa, desfaz-se o arco-íris. Uma figura humana ocuap o lugar do pequeno voador. Primeiro, como uma bonequinha, a tez morena, cabelos castanhos... Veste roupas claras, num tom que realça o azul do olhos, contraste agradável com a pele e os cabelos.
Sento-me na cama ao sentir que a boneca cresce e se movimenta com naturalidade. Em pouco, é como um bebê, aberçada em meus braços; e cresce e cresce, com suavidade e persistência, até estar sentada nos meus joelhos, os braços a enlarçar-me o pescoço. No rosto, um riso amável candura. Dedos sedosos riscam-me a cabeça, caracolando-me os cabelos.
-— Ontem era solidão -— disse eu.
-— Voei ao encontro do teu pensamento -— respondeu-me a Passarinha.
-— A solidão é falta de luz. Nada se vê, nada se imagina -— insisti.
-— A luz do dia premia-me pela esperança. Quando é noite, conservo em meus olhos dois sóis pequeninos, capazes de me fazer enxergar mesmo com os olhos fechados. É assim que durmo e por isso é que sonho sempre.
-— Ensina-me a sonhar! Quero sonhar contigo!
-— Já o sabes. Foi o teu sonho que me trouxe aqui  — explicou a Passarinha.
Dou-lhe o coração por promessa; ganho-lhe o coração por compromisso. Sentimos de novo o arco-íris e unimo-nos num beijo interminável.

 

A janela do quarto parece-me enorme. De pé sobre o parapeito, sinto nas minhas as mãos do Passarinha. Percebo, perplexo, que apenas roço nas suas as penas de minha asa esquerda e ouço um duplo ruflar de asas. Somos nós, voando livres. Volteamos o edifício, sobrevoamos a cidade e pousamos, felizes, na bateia da estátua do Anhangüera.
Donos da manhã e do mundo!

Luiz de Aquino (GO)

Do livro: "A noite dormiu mais cedo", Instituto Goiano do Livro, 2002, GO

« Voltar