Ou Todos ou Nenhum 

O todos o ninguno
Trá- la-la-la-la-la-áá
O todos o ninguno
Tibi-rí-bi-ri-bi-ri.

               Cantávamos esse hino herdado dos anarquistas na guerra civil espanhola, ensinado e puxado por Antônio. Era madrugada em Amsterdã e estávamos entregues à farra depois de uma pesada semana de trabalho. Uma lua cheia estava suspensa na atmosfera. Noite quente de verão. Ronaldo, Antônio e eu resolvemos cair na gandaia. Nada de novo para um trio de boêmios inveterados. Eu e Ronaldo no exílio, Antônio, nosso eterno amigo, esteja onde estiver. Antônio é espanhol, de Barcelona. Escolhera o exílio à convivência com Franco. Trabalhava naqueles tempos como motorista e foi em seu táxi que nos conhecemos. Antônio percebeu nossa nacionalidade e sabia da ditadura no Brasil.
               Sabia das torturas, da censura e da crueldade desumana do sistema militarista implantado. Ele tinha pelo menos mais vinte anos de idade que nós. Fora menino durante a guerra civil na Espanha. Seus pais foram executados. Fora criado por um casal de holandeses. Antônio é dono de um humor fraterno constante. Espirituoso, imune à frieza racionalista de grande parcela dos europeus. Anarquista, estava preparado para tudo.
               Uma amiga de Ronaldo convidara-o a uma festa e ele não poderia levar amigos. Mas Ronaldo queria estar conosco, e pelas ruas de Amsterdã, iluminados pela lua cheia, abraçados como uma trança, cantávamos ao vento, dançando em compasso, ensaiando nossa chegada à farra entoando nossa proposta aos anfitriões:

Ou todos ou nenhum
Tra la-la-la-la-la-lá
Ou todos ou nenhum
Tibi-ri-bi-ri-bi-bí.

               A festa estava um arraso. Quase não dava pra entrar de tanta gente. Úrsula, a amiga de Ronaldo que não desejava a presença de mais ninguém, além dos convidados oficiais, tinha lá suas razões. Todo mundo levou penetras. A patuscada estava mais pra happening do que outra coisa. Rolavam vários tipos de droga e a mais consumida era a diamba oriental, de ótimo sabor e aroma. Lá pelas tantas, uma menina tirou a roupa e dançou nua entre os convivas sem ser perturbada. Nada original para aqueles tempos. Adotamos a estratégia de nos separarmos e todos conquistamos namoradas.
               Acordei ao dia seguinte às três horas da tarde na casa de Valentine, uma francesa que morava em Amsterdã com sua filha Camile de nove anos.
               Camile passeava sobre a cama em que estávamos deitados um tanto surpresa por minha presença em sua casa e na cama de sua mãe. Valentine a tranqüilizou nos apresentando. Eu estava tão atordoado quanto ela, ou mais do que ela. Aquilo estava longe de ser comum em minha vida, mas era por demais gratificante conviver com uma estrutura familiar libertária, progressista, que admitia a liberdade individual como um valor supremo e que reconhecia as pessoas pelo que desejavam e não por estereótipos ou convenções.
               Ronaldo ficara com Úrsula e Antônio, atravessou a noite enroscado, apaixonado por uma bela morena da Guiana Holandesa.
               O hino dos anarquistas funcionou como um mantra, tendo em vista o resultado da festa para cada um e para todos nós:

Ou todos ou nenhum
Tra la-la-la-la-la-lá.
Ou todos ou nenhum
Ti bi-ri-bi-ri-bi-bí.

Alexandre Acampora

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