OS DEUSES ESTÃO MORTOS

Esse era o nome de uma novela da TV Record, nos anos de 1970.
Nela um fazendeiro, brilhantemente interpretado por Rolando Boldrin, era o vilão. Cruel e violento, ele era a personificação do “tirando de aldeia”. Tinha a vila em suas mãos, fazia e desfazia, inclusive com os que, teoricamente, deveria amar.
Ele tinha muitos escravos e os tratava da pior maneira possível. Não admitia ser questionado, e quem o fazia podia contar com dias turbulentos pela frente. Dependendo da afronta ou incômodo, poderiam ser, também, poucos dias... Talvez não fossem, mas ficariam bem marcados, pois, em frente à sua casa havia uma argola, onde escravos rebeldes ou “fujões” eram açoitados sem compaixão. Seus desafetos não tinham melhor sorte, sempre sujeitos a tramóias e emboscadas.
Portava-se como um deus: inflexível, intocável e, a seu ver e de seus sequazes, infalível.
Certo dia surgiu um andarilho na vila. Seu olhar era enigmático, apesar de - se não me engano - usar um tapa-olho. O homem revelou-se um místico e passou a fazer presságios, que logo foram confirmados!
A fama do homem se espalhou, e o velho fazendeiro também quis saber o que o futuro lhe reservava. Mandou chamá-lo...
Diante do todo-poderoso senhor das terras, o místico, com o olhar fixo e a voz grave, fez seu oráculo: “O senhor nunca há de cair morto!”. O tirano, que já era “difícil”, ficou impossível: Já crente de que era uma pessoa especial, agora se via, também, imortal: Um deus, acima do bem e do mal!
Mas os acontecimentos fugiram ao seu controle e, lá, na distante Côrte Imperial, a Princesa Isabel assinou a Lei Áurea... A escravidão oficial fora extinta no Brasil!
Os escravos, libertos das correntes, seguiram, então, para a casa do fazendeiro. O mesmo ocorreu com todos os que haviam sido vítimas do algoz...
Ao ouvir o alarido ele não se intimidou: Saiu esbravejando e enfrentando a todos. Embora fosse uma novela, foi muito bem retratado o poder do carisma, pois, embora muitos quisessem “por as mãos” nele, só conseguiam cercá-lo. Ele seguiu, desfazendo de todos, falando de seu poder e bradando: “Eu nunca vou cair morto! Eu nunca vou cair morto!”. Foi quando franziu o rosto, e levou a mão ao peito... Sua voz diminui de intensidade e seu andar ficou trôpego. Passou a encostar-se nas paredes, agora, com ar estupefato, pela dor que sentia. Seguiu assim até a argola onde os escravos eram maltratados. Agarrou-se a ela com todas as forças que lhe sobraram... Ali, pendurado e ainda a dizer: “Eu nunca vou cair morto!”, deu seu último suspiro...
De longe, o místico confirmou sua profecia: “Eu disse que ele nunca cairia morto...”. De fato, não caiu: morreu de pé!
A “novela” das CPIs tem muito a ver com isso: Há “deuses”, “santos” e “anjos”, de todas as cores e partidos sendo desnudados e expostos; mesmo assim, insistem em se agarrar a toda a “argola” possível e impossível, na certeza de que estão acima do bem e do mal! Alguns cobram para si, hoje, os direitos que negaram aos outros, no passado, quando, em vez de julgados eram juízes.
Na História, o verdadeiro caráter de muitos homens públicos endeusados por seus povos, só foi conhecido após suas mortes! Da mesma forma, muitos dos que foram perseguidos e desmoralizados por eles só foram resgatados quando não era mais possível reparar os erros ou pedir desculpas!
É... O jogo do poder é cruel! Mas os que hoje lutam, hoje, talvez não pereçam nem na vida política! Afinal, o carisma ainda é um grande mistério... Quem sabe evitem a cassação... Mas, ainda que percam seus direitos políticos temporariamente, hão de sobreviver. Os erros dos outros talvez, até, os redimam, ou amenizem os seus... No entanto, mesmo que continuem a se apegar às “argolas” de seus egos, sua credibilidade já está comprometida, caída. Nesse patético cenário político a única solidariedade com que podem contar é a certeza do povo, de que muitos dos que os julgam deveriam, também, ser réus!
O místico da novela tinha apenas um olho, mas conseguia enxergar o futuro. Muitos de nossos políticos têm dois olhos, mas estão cegos pelo poder, pela arrogância, pela ganância ou pela submissão. Poucos caem, mas, o povo, sempre de boa-fé – apesar de açoitado por suas decisões e indecisões – tem uma imensa –às vezes excessiva capacidade de perdoá-los, nas urnas.
A esperança é que um dia nossos políticos desçam de seus pedestais – ou subam de seus fossos – e realizem que não são deuses nem senhores, mas, porta-vozes de milhões de seres humanos; e que não estão acima do bem e do mal, mesmo que se dêem vantagens e imunidades.
Nesse dia, talvez realizem que não faz sentido pregar igualdade, mas, se crer diferente; e que, por mais duro que isso possa lhes parecer, existe a possibilidade do Brasil ter um futuro melhor sem eles, e apesar deles!

Adilson Luiz Gonçalves

« Voltar