Cada dia mais... cada um sabe, ou não, de si

Logo que o dia amanheceu naquele ensolarado mês de Setembro, ele saiu de casa.

Aliás, como fazia todas as manhãs, dos outros 11 meses.

Percebia-se em sua face e no peso que parecia levar sobre os ombros, que sua noite não tinha sido das melhores.

Mesmo assim, ele colocou o sobretudo sobre o pijama e foi.

Com os passos firmes e apressados de seus sapatos isentos de graxa, ganhou a rua; buscou ter a confirmação da hora cronometrada, nos enormes ponteiros do velho e suíço relógio, fincado no alto da torre do Ed. dos Grandes Marcos Latinos.

Parou por um momento na calçada.

Enquanto esperava o semáforo sinalizar em verde para os pedestres, uma senhora o cumprimentou gentilmente, ao que ele, nem um gesto cortêz esboçou. Limitou-se a olhá-la, voltando em seguida seus olhos impacientes, em direção aos ajustados ponteiros do grande relógio.

O silvo no apito do guarda soou alto. Os carros ainda paravam quando ele tomou a rua, distanciando-se assim dos demais. Paciência nunca foi o seu forte.

Meticuloso, sabia de cór quantos passos eram necessários, para atingir o seu destino.

Só que naquele dia, uma criança o tirou do prumo.

Distraída com um cachorro que correra atraído pelo barulho de uma latinha de refrigerante. O menino em sua observação sorridente, não percebeu que parara bem no meio da calçada. Tornando-se assim, um obstáculo provável. Criou involuntariamente a oportunidade precisa, para que o mau humor naquele homem viesse à tona.

O tropeço no menino o obrigara a aumentar a quantidade de passos “necessários”. E isso para ele, assim como tudo o que fugia ao seu controle, às suas normas, tornava-se um desrespeito articulado com antecedência. Mesmo que, para quem o provocara, fosse totalmente sem intenção alguma de fazê-lo.

Ele lançou várias palavras bravias ao ar, contribuindo com o aumento da poluição que nem notara existir.

E assim seguiu ele, resmungando internamente. Tentando agora dar passos maiores para compensar os que havia desperdiçado.

Olhou novamente os grandes ponteiros imponentes, que lá do alto do prédio, continuavam a marcar o tempo, completamente indiferente e imparcial a tudo o que ocorria lá em baixo.

E ele seguiu por seu caminho assim...

Olhando para dentro de cada porta comercial aberta, sem que isso lhe cobrasse parar ou perder a rotina dos passos. Pois que só olhava, para os que já sabia exibir, no alto de sua parede interna, além da imagem de seus santos protetores, iluminados por lâmpada ou vela, agraciados alguns, por vasos quase sempre encardidos a acolher desbotadas rosas empoeiradas e artificiais.

Mas isso para ele não tinha a menor significância. Porque o que lhe interessava ali, era achar naquela parede, o marcador de tempo... o relógio.

Finalmente chegou ao lugar que tinha por meta.

Marcos Ciro estava ainda arrumando os jornais em sua banca quando ele chegou.

Como sempre, num canto, já estavam separados os jornais desse taciturno e impaciente cliente de pontualidade fidelíssima.

Ele pagou com dinheiro certo, o que o desobrigava de perder algum tempo aguardando o troco e tomou o caminho de volta. Cumprindo a trajetória que para ele era a mais lógica.

Adentrou ao parque, os jornais em suas mãos eram mais importantes que os pássaros, os micos, a preguiça, os porcos-da-índia e as cotias que se alimentavam e viviam ali.

Passou indiferente pelos que corriam para manter a saúde, como também pelos que buscavam por ela; pelos que estavam sentados; pelos que estavam enamorados; pelos que estavam caminhando despreocupados; pelos que estavam atrasados; pelos que estavam se divertindo; pelos que ainda em casa nem haviam chegado; pelos que não tinham onde chegar; e também pelos que embora tivessem, não tinham pressa alguma, já que não havia ninguém a lhes esperar.

Chegando no prédio onde mora, subiu metodicamente os dois lances de escadas. Pegou o molho de chaves no bolso direito do sobretudo, encaixou a certa com a devida exatidão e a girou, abrindo assim a pesada e antiga porta.

Respirou fundo, aliviado entrou em seu apartamento, trancando a porta atrás de si, tirou o sobretudo, pendurando-o como sempre no porta-casacos que ele estrategicamente aparafusara atrás da porta.

Na cozinha o café na cafeteira ainda estava quente.

Serviu sua xícara e se dirigiu novamente à sala.

Sentou-se na cabeceira da oval mesa de madeira e abriu os jornais.

Seu rítimo cardíaco agora era descompassado. Em sua testa, gotas de suor brotavam frias.

Secou o suor excessivo das palmas das mãos, esfregando-as nas laterais da calça do surrado pijama.

Buscou a página certa em cada um dos jornais, descartou as excedentes na lixeira.

Não tinha nenhum interesse por política ou mercado financeiro, nem por colunas sociais, religião ou literatura.

Seus olhos tinham rumo certo, buscava aquela notícia há anos.

Percorria sempre com muita atenção cada linha. Assim como também, lia atento o que continha nos quadrados e também nos retângulos que se apresentam, quase sempre, com moldura em negrito.

Não encontrando o que procurava, amassava a página e a arremessava na lixeira, passando imediatamente para a próxima.

E assim ele fez... fiel e pontualmente, durante os últimos dez anos.

Cumpria assim, seu ritual de todos os dias.

Desde que se aposentara por invalidez, devido ao stress, que ele buscava, nas páginas do obituário local, ser avisado com a devida e respeitosa antecedência, da data, local e hora, da missa de sétimo dia dele mesmo.

Mas... pelo visto... ainda não foi dessa vez.

Jaqueline Saraiva

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