JUSTIFICAÇÃO

          Meu maior amigo chamava-se Hélio Bruma (*). Com ele convivi em estreitíssima intimidade até aos vinte anos. Por aí, como a “vida prática” me acenasse e fosse ele o mais impenitente dos contemplativos — vulgo “pateta”, separâmo-nos de boa cara. Helio abraçou, dizendo-me:
          — Adeus. Mudo-me para Marte.
          — ?!...
          — Sim, Marte, o planeta. Tinha um amigo na Terra, tu; mas vejo-te mudado, cheio de idéias práticas, de olhos ferrados na vitória. Isso fatalmente nos separará no correr do tempo. Ora, se tem de ser assim amanhã, precipitemos os acontecimentos: seja hoje. Adeus! Como lembrança deixo-te o meu diário.           Casa-te, multiplica-te, ganha dinheiro, sê feliz. Quando deres de engordar, lê o meu diário. Adeus.!
          Disse e sumiu-se
          Por muito tempo conservei na gaveta o diário do meu amigo. Pesava-me, e a balança acusava sempre cinqüenta e seis quilos. Agora que acusa cinqüenta e nove, julgo-me em ponto de bala para folhear o misterioso calhamaço. Faço-o, e encontro pequeninos quadros, paisagens, relatos, instantâneos, sonhos, idéias, revoltas, azedumes. Gaveta de sapateiro de um menino que prometia.
          E resolvi dá-lo ao público, escolhendo quanto baste à prova de que Helio fez bem em se mudar de mundo. Um contemplativo! Um pateta que se por aqui ficasse acabaria de cabeleira, a sonhar mundices de lua.

Monteiro Lobato

__________

(*) Pseudônimo que Monteiro Lobato mais usou, antes de aparecer com o seu verdadeiro nome.
Do livro: Mundo da lua & Miscelânea, Ed. Brasiliense, SP, 1957

 

« Voltar