Faltou família

Nas aléias ensombradas da Grécia Antiga, mestres e discípulos caminhavam juntos e conversavam, discutiam. A cada resposta dada pelo aluno, o mestre o remetia a nova problematização que gerava nova pergunta, e que suscitava outras perguntas, outras reflexões. Discípulo e mestre, envolvidos pelo suave ar da tarde e pelos temas discutidos, tornavam-se amigos, cúmplices, companheiros de aventura.

Conheci um rapaz, aprovado num dos cursos da UFRN, que se matriculava aleatoriamente em todas as disciplinas que pudesse cursar e que lhe interessassem, independentemente de serem ou não do seu curso. Quando alguém observava que desse jeito ele jamais iria se formar, respondia que isso não importava: ele gostava mesmo era de aprender coisas novas.

O escritor e crítico Edson Nery da Fonseca diz que a sua idéia de Universidade é uma imensa biblioteca, onde os alunos leiam durante uma boa parte do tempo e voltem às salas de aula apenas para discutirem as idéias que essas leituras suscitaram.

O pescador leva para o meio do oceano seu filho de oito anos, que o acompanha na pesca e, junto com o pai, fazendo e experimentando, aprende os segredos das ondas, dos cardumes, da direção do sol e dos ventos.

Volto no tempo e vejo os serões da minha infância. Papai, sentado na sala, ouvia rádio, e lia, interrompendo a leitura para ler um trecho para minha mãe em voz alta. Nós, crianças, fazíamos nossos deveres de casa, e mamãe e titia nos ensinavam. Havia tempo para isso e a TV não roubava a atenção de toda a família. Quando ficamos maiores, as noites eram animadas com jogos de palavras, adivinhações, recitativos, histórias. Toda noite recitávamos um soneto que havíamos decorado durante o dia e é assim que eu ainda hoje sou capaz de recitar horas a fio, porque aprendi na infância. Mamãe nos mandava fazer a conta para pagar ao leiteiro: um litro e meio por dia, a tantos cruzeiros o litro... e corríamos a pegar um lápis e um papel, para ver quem dava o resultado primeiro. E eram charadas, palavras cruzadas, logogrifos, consultas aos dicionários. Papai era charadista, e cedo nos iniciou nos mistérios da enigmística. Havia também um grande Atlas em casa, e papai nos mandava procurar as cidades no mapa. “Encontre... Adis-Abeba!” “Onde é isso, papai?” “No mapa da África.” E começava a competição para ver quem encontrava primeiro. Assim íamos aprendendo geografia.

Afastada da sala de aula desde 2002, quando me aposentei da docência universitária, continuo refletindo sobre o processo de ensino-aprendizagem, que foi meu “métier” durante quase trinta anos. Nesta época do ano, quando vejo a aventura escolar transformar-se numa verdadeira gincana de absurdos, com os preços do material escolar, as solicitações sem propósito das listas distribuídas pelas escolas, a prática da “venda-casada” – ou seja, os pais são obrigados a comprar o material na própria escola e o desespero desses mesmos pais para ajustar a agenda da criança, sobrecarregada de atividades extra-classe e sem tempo para brincar... E as tarefas caseiras são feitas sempre com a televisão ligada porque a mãe ou o pai, quando está ali ensinando, não quer perder o episódio da novela ou do Big Brother.

Hoje eu vejo que meus pais nunca delegaram à escola o compromisso de me educar. Eles me educaram em casa, e na escola eu fui aprender a conviver com crianças da minha idade, adquirir informações sobre temas que meus pais não dominavam e ter experiências relacionais que o espaço familiar não permitia. Mas educação, formação, essa foi doméstica mesmo. É por isso que vemos os adolescentes e jovens se comportarem como verdadeiros trogloditas nas praias, nas festas, na sociedade. Para eles, o espaço pedagógico é o da escola, e somente lá eles têm obrigação de ser “gente”. Fora, vale tudo, pode tudo, e na selva do mundo todos podem e devem ser selvagens, truculentos, agressivos e mal-educados. Faltou escola? Não: faltou família.

Clotilde Tavares

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