Um pouco acolá do mais ali adiante

             A resolução de endurecer sem ternura (para amargor do velho Che) já estava quase me tomando quando Ana Durães, minha irmã de trauma, me falou de uma flor que só ela conhecia a existência. "Como, uma flor que ninguém mais conhece?", perguntei aguçada pela curiosidade que só os agricultores conhecem. "Pois é, não é que a flor nasceu da noite pro dia, um pouco acolá do mais ali adiante", Ana respondeu com a mineirice lógica de Guimarães.
             A conversa desviou para as mundanices da vida e vez por outra a flor desabrochava entre vírgulas, letras, exclamações e pontos, acenando de um acolá carente de geografia. "Tua flor tá parecendo com as rosas do Diego", eu disse, já me preparando para o acolhimento de um milagre. "Pois é, acho que é flor de Maria", Ana respondeu,  agarrando um escapulário de Santa Bárbara.
              Se a flor pertencia a Maria ou se era de Guadalupe, de Santa Bárbara ou de algum botânico que a criara por vias híbridas, não interessa. A verdade é que se anunciou o milagre: as resoluções drásticas que eu semeara no solo fértil da alma, voaram com as últimas folhas de um calendário que tenho grudado na porta da geladeira. Bem verdade que eu preferia um pinguim, daqueles de louça, vestidos a rigor e com biquinho amarelo, mas pinguins andam em falta e, na falta deles , um calendário da "Panificação Flor de Olaria" cumpre o mesmo papel. Mas deixando a estética de A. Moles de lado e voltando as resoluções, ao terminar a conversa alguma coisa havia mudado...
             Olhei para os lados e dei de cara com a minha horta, os meus livros, os meus discos e a matutice de minha rua. "Bão dia", disse Dona Isaura, minha vizinha, conduzindo o seu vira-lata por uma cordinha. Não deu tempo para responder, pois ao passar Isaura deixou cair uma flor. "A flor de Ana!!!!", exclamei eufórica.
             Despetalada como a boca sem dentes de Isaura, tímida  como um discreto bão dia , inocente como um vira-lata conduzido por uma corda, ali estava a tal flor. Verde, amarela, rajada de azuis e com perfume de extrato barato. Lembrei-me do colo de minha babá e afundei o nariz no odor de talco cashemire bouquet, coloquei-a na boca e senti o gosto de tapioca, angu e arroz com ovo. Sacudi-a no ouvido e ouvi os tambores do bumba meu boi, as cuicas da mangueira e as ladainhas das procissões.
             Dona Isaura estranhou quando me viu agarrada a uma flor despetalada e murcha. Mas não disse nada. Seguiu o seu rumo em direção à venda, com uns poucos trocados para comprar a linguiça da ceia do ano novo.
             E foi assim que a ternura de Che me inundou a alma e decidi anular as resoluções. No ano que se inicia continuarei (e sei que muitos assim o farão) a ver beleza num povo que de tão belo ofusca qualquer ouro. E... afinal, por mais ouro que possam ter os corruptos, nada se compara a glória de ter amigos que enxergam flores um pouco acolá do mais ali adiante!

Marcia Frazão

Obs: um 2006 cheio de flores!

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