Doa a quem Doer
Quando eu era bem pequena, mamãe me ensinou a brigar pelo que eu considerasse correto, pelos meus valores. Ela me instruiu para argumentar, mostrar minhas idéias de peito aberto, ser verdadeira, autêntica, doesse a quem doesse. E me dizia isso com um orgulho atávico! Era uma questão de honra ser assim, ter palavra, ter uma cara só, em qualquer circunstância. E essa frase ecoou por décadas em meus ouvidos: ?doesse a quem doesse?. Só que eu nunca poderia imaginar que doeria a vida toda em mim!
Mamãe me dizia, com um olhar de dona do mundo, que eu havia nascido mulher, que era a maior dádiva da vida e, como tal, eu seria responsável pela preservação da espécie, a genitora, a mãe, a vida! E que seria admirada, respeitada e protegida, justamente por isso.
Não preciso contar o quanto mamãe era romântica e já possuía um sentimento feminista feminino de sábia mulher, porém sem as bases de sustentação, que só muitos anos mais tarde iriam, muito lentamente, sendo fincados na sociedade e no mundo.
E o tempo foi passando, eu fui crescendo arvorada de mãe do mundo, de inovadora, de justiceira, tudo isso mesclado com a vontade de cuidar, de curar (um quê de bruxa, wicca), e com uma consciência social muito forte, um desejo de liberdade e igualdade entre as pessoas, independente de raça, credo ou
sexo, e uma alma poética ? meu lado frágil e presa fácil.
Acontece que eu cresci mais depressa que o mundo ao meu redor. Eu e algumas outras mulheres, em todas as partes do planeta. E, como a maioria não teve uma mãe como a minha, e nem nasceu num país de primeiro mundo, onde esses direitos todos são mais discutidos e conquistados, cá estou eu em Terra Brasilis, tentando traduzir minha língua universal/tupiniquim para o português feminino/plural.
Então, vejamos a equação: mulher + bonita + inteligente + independente = incômodo => problemas. E os problemas estão por todo lado. Seja no âmbito profissional, afetivo, educacional, sócio-cultural e, até mesmo, uma competição desleal da classe feminina, aquela por quem luto, conspirando debaixo dos panos. Isso sem falar de homens bem minúsculos ? porque aprendi que homem se deveria escrever com h maiúsculo ? que não honram a categoria, e morrem de ciúme da competência, da determinação e da capacidade de persuasão de certas mulheres, tentando, por tal motivo, subjugar e, quando não conseguem, denegrir, ofender, agredir, calar a boca de qualquer jeito.
Ah, mamãe, o tal ?doa a quem doer? dói...
A gente se sente um ET no meio da multidão. Como é difícil e árdua a tarefa de levar a noção de liberdade para homens e mulheres tão presos a preconceitos, tão limitados a sentimentos medíocres, tão algemados a dogmas, tão vinculados a hipocrisia, a subserviência, a separatismos! Como seria tudo mais simples, se ao menos se tentasse a convivência pacífica, com liberdade, com desprendimento, com os mesmos direitos para homens e mulheres, para pobres e ricos, para jovens e velhos, para qualquer raça, porque somos universais, porque fazemos parte da mesma Mãe Natureza, que nos dá vida, nos nutre, nos ilumina, nos aquece, nos refresca, nos hidrata, nos acalma, nos aconchega e nos recebe de volta.
Nenhum de nós é imune ao tempo.
Então, por que a disputa, se a linha de chegada é tão negada, tão assustadora e combatemos tanto, retardamos tanto? Por que disputar chegar na frente, se não queremos, no fundo, chegar?
Guerras, violência, drogas, escravidão, assédio, submissão, todas essas coisas, mesmo aquelas subentendidas, subliminares, levadas na brincadeira, machucam a terra, ferem a Mãe, afastam o ser humano de sua humanidade. A cada irmão atingido pela indiferença, pelo descaso, pela inveja, pela palavra, pelo silêncio, pela dor provocada, mais e mais o humano se distancia da verdade, do prêmio, da paz.
E, no meio disso tudo, eu incomodo. Incomodo porque não temo a dor, sou forjada numa têmpera de aço e amor, de fé e ceticismo, de valores e ideais muito além do individualismo. Incomodo porque cutuco as feridas, porque mostro a que vim, porque não me escondo por trás de falsos profetas, ou falsas comunhões, falsos santos e falsos testemunhos. Incomodo porque não me dobro a elogios, não me vendo por nada, não me traio. Incomodo porque não quero nada pra mim, mas para a humanidade. E isso incomoda!
Já houve quem quisesse me pintar de sonsa, de interesseira, de vaidosa. Gastaram a tinta toda, os refis do universo, e não conseguiram encontrar as minhas cores. Basta que me olhem e me vejam. Não precisam inventar. Olhem! Mas olhem com os olhos nus, não com máscaras que embotam todas as verdades. E, nesse momento, eu deixarei de incomodar, quando cada um perceber que deve procurar seu destino, sua missão, seus desígnios. Quando entenderem e encontrarem, eu deixarei de incomodar. Sim, porque eu só incomodo aos vazios, aos sem sentido, aos que vivem para seus umbigos, trajando antolhos, desfiando o rosário da intriga, da difamação, da incompreensão, da falta absoluta de generosidade, camuflados por palavras vãs e gestos coreografados para? inglês ver?.
Aos homens e mulheres livres e de fibra, a esses eu não incomodo. Ao leitor que se identificou, eu não incomodo. Mas certamente incomodarei, e muito, aos que vestirem a carapuça e sentirem o desconforto da justeza das vestes.
A esses, ofereço a força do recomeçar, a experiência do auto-mergulho e da faxina dos velhos mofos do coração. A esses eu oferto o princípio das coisas, a poesia das manhãs, a beleza do sorrir em paz e livre, a delícia do cantar junto com o irmão desconhecido, a oportunidade de ouvir os cânticos da noite, a alegria de finalmente reconhecer sua espécie: humana.
Ah, mamãe, o tal ?doa a quem doer? dói... dói, mas compensa, gratifica, faz delirar! E mais ainda quando se consegue fazer entender para o outro, quando se identifica pessoas livres de arrogância, de pé atrás, de armas, de escudos.
Um dia, mãe, deixará de doer, eu sei. E aí, a Grande Mãe voltará a reinar e a nutrir a civilização, e todos trabalharão para o bem comum, todos cuidarão dos seus, e no mundo não caberá discriminação, racismo, distribuição desigual de afeto. E aí, mãe, finalmente seremos iguais.
Lílian Maial