Visita à memória e a Martha Medeiros
À guisa de preâmbulo (bonita palavra, preâmbulo; penso que devo usá-la mais vezes), informo e justifico: não foi preguiça de produzir um novo texto, nem nada; é que uma imagem de saudade mexeu com meus neurônios e me fez chafurdar estantes e espirrar demais, pois o pó fino que reveste os livros é incômodo, até encontrar, numa bagunça só justificada pelas mexidas constantes, as mudanças de lugar. Mas, vitorioso, eis que em menos de duas horas de busca, livro a livro, encontrei o que queria: "Cartas extraviadas e outros poemas ", da gaúcha talentosa e por isso muito amada Martha Madeiros. Peguei o livro, tateei-o com o carinho que se dá aos seios da amada, reli-o e decidi: hoje, não vou escrever; vou republicar aquela crônica. E a crônica, publicada em janeiro de 2001, teve o título "Martha, poesia mulher". Eis o texto, integral:
" Às nove, vou de ônibus a Santa Cruz, ver Eliane. No ônibus, chia o ar condicionado e a moça ao lado lê Capricho. Comigo, o livro de Martha Medeiros, aquele de capa vermelha.
Paúra: dois canhões e duas dezenas de caminhões, a ambulância, uns jipes – todos em pinturas de camuflagem – lembrança dos anos do medo.
A moça ao lado, morena e calada, troca a leitura pelas palavras cruzadas. Desiste, dorme. Eu também. Acordo sem adjetivos. Há uma curva longa e aguda e leio na parede "rodoviária" e "Loja M. M. Leopoldo". Onde estou? Não é o fim da estrada, apenas o meio do mundo. A moça clara, na poltrona do outro lado, acorda e boceja. Tem lábios finos (não gosto), mas que belas pernas! Duas poltronas atrás, a voz feminina liga o celular, fala com a mãe: "Fui ao médico, sou alérgica até a esmalte".
Achei poético aquilo de ligar para mãe minutos antes da chegada. Lembrei do discurso de recepção a Leda Selma, na Academia Goiana de Letras, quando discorri sobre a poesia na prosa. Entendo que não há bom cronista que não seja poeta – se não na forma, na alma do texto. Ao redigir tal discurso, atentei para os cronistas locais, os nossos companheiros vários nos jornais de todos os dias. Bons cronistas são, sem dúvida, bons poetas. Seus textos têm peso político e leveza de pássaro.
Pela Internet, conheci a crônica dessa moça gaúcha, Martha Medeiros. Depois, confirmando minha definição de cronista, conheci versos de Martha – publicitária de formação e ofício, mulher de seu tempo, sensível e corajosa. Tem isso de mãe – mas não de mãe matrona, sim de mãe coragem.
Na Feira do Livro de Porto Alegre, Rejane, poeta carioca (atualmente vivendo em Uruguaiana) mostrou-me o livro de capa vermelha. Em letras brancas e grandes, o nome de Martha Medeiros; em miúdas, o título: Cartas extraviadas e outros poemas.
Era domingo; segunda-feira, no ônibus para Santa Cruz do Sul, desfrutei da sensibilidade da poetisa porto-alegrense. Os poemas são numerados e todos exigem uma pausa, um pensar demorado, como o 11: "um quase silêncio, o dia nublado / reflexo dos meus olhos em vidros embaçados / repentina clareza, vejo de ambos os lados / somos duas pessoas sentindo tudo errado ". No 43, a coragem de quem nada tem a esconder: " beije-me as coxas / pálpebras, dedos, lóbulos / os dois // beije-me os seios / um e outro, que são ciumentos / ambos // beije-me os lábios / superior e inferior / os grandes e pequenos // todos".
Pincei dois poemas, só. Quero apenas deixar uma amostra dessa moça poeta, cronista do jornal Zero Hora, lida e amada, que os do Sul são dados a leituras, inclusive de boas crônicas; tanto que, recentemente, em entrevista a Marília Gabriela, Martha contou que até mesmo em supermercados é instada a dar autógrafos a pessoas do povo.
Da próxima vez que for lá, vou conhecê-la de perto. Também quero autógrafo".