O avesso do direito
Numa manhã fria de outono...
Estava eu sentado em minha poltrona predileta, bebericando um café quente e lendo o jornal matinal. O edredon macio aquecia minhas pernas paraplégicas. Quando um anúncio fúnebre em negrito, com letras garrafais, chamou-me a atenção. Nele estava escrito:
TRAGÉDIA!!
ASSASSINADO PORTUGUÊS.
E PORTUGUESA SOFRE MAL SÚBITO.
Tentei não me deter nesse assunto, que me pareceu inadequado ao horário. Gosto de assuntos mais amenos pela manhã. Mas foi mais forte o apelo. O que me chamou a atenção foi o fato de ser português o defunto. Esse fato aguçou deveras minha curiosidade. Cheguei o jornal para mais perto dos óculos, para que não me pudesse escapar alguma letra atrevida. Com meus olhos fitos naquela folha de papel, li atentamente cada palavra, cada vírgula, cada ponto. Esse assassinato mobilizou a opinião pública. Em todas as emissoras de rádio e televisão, só se falava desse fim trágico, com o qual também estou perplexo ao ler notícia tão estarrecedora.
Professores que estavam em passeata pelo local, juntamente com alguns médicos grevistas, que vinham a passos do Paço Imperial, presenciaram a tragédia. Os professores passaram mal, com náuseas e tonturas, a cada tentativa de fazer reviver o português belo e robusto, elegante e imponente, que desfalecia em suas mãos.
Ao longo da avenida, assistiam estarrecidos, tamanhas atrocidades: “Aqui borra-cheiro”, “Ce tu não çobe eu deço”, “Vendo meia pra criansa”, “Xuxu 2 real o kilo”, “Demoro! O kara é cinistro”, “Nóis foi ao parque”.
No IML(*) compareceram: o latim, o espanhol, o francês, o italiano, outro português e o velho grego. Deveras consternados, olhavam sobre a mesa fria a língua sem nexo, que fazia com que ninguém a reconhecesse. Olharam entre si; e confusos se preparavam para retirar-se do aposento mórbido, quando num sopro de vida, a língua deu um salto e voltou a falar, para espanto de todos! Com voz sôfrega e o tom trêmulo ela pediu:
— Socorro! Tenham mais cuidado, não assassinem o português. Leiam! Estudem! Escrevam! Aprendam! Estou viva enfim! Não quero na minha lápide: Aqui jaz uma língua sem pátria!
Com o susto, acordei!
Aproveitei a adrenalina e fui fazer meu cooper !
Que pesadelo!
Cruz credo!
Jaqueline Saraiva
(*) Instituto Morfológico da Língua