ENCONTROS

Vidas que se cruzam, parece nome de filme, mas é o que, de verdade, acontece neste nosso mundo, o tempo todo, histórias se confundindo, enredos se entrelaçando, construindo o romance de uma era ligada a outra. Somos o que somos, o que vivemos, o que está acontecendo, mas não desligados do passado, mais remoto, que vem lançando os fios desta teia que se projeta para o futuro.

Daqui a dez mil anos, assim como nossos antepassados de cem séculos nos construíram, estaremos presentes nas células dos corpos de todos os seres que nos sucederem, do mesmo modo que na estrutura das plantas, nas águas dos rios e dos mares, na terra, no ar.

Somos tudo e não somos nada. Cada partícula que nos compõe esteve, há bilhões, trilhões -- uma infinidade -- de anos, perdida no funil de tempo e de espaço do Universo, vagando pelo Cosmo, separadas umas das outras por distâncias inimagináveis, compondo nebulosas, formando estrelas, que iluminaram mundos, explodiram, recomeçaram o seu interminável trabalho, quantas e quantas vezes?, e juntaram-se para constituir este corpo.

Assim Carminha olhou para o espelho e admirou sua imagem, a beleza morena, os lábios expressivos, olhos profundos. A juventude da pele deu-lhe uma sensação de vigor, um quê superior, que impelia para a vida lá fora.

Enquanto isto, Borges escrevia. Ele não pensava nessas coisas, nem no burburinho das ruas. Sentia-se solitário, enquanto tirava os olhos do papel e observava a claridade entrando pela vidraça. No fio, alguns passarinhos remexiam-se, nervosos, agitados, trinando. Uma pedra abateu um deles. Borges levantou-se e olhou pela janela. Um menino segurava uma atiradeira numa mão e na outra agasalhava o passarinho, barriguinha para cima, a cabeça pendida, balançando-se. Ele, o menino, não entendia aquilo. O passarinho estava morto. Pela primeira vez Borges e o menino compreendiam a morte. Os olhos de ambos marejavam de lágrimas. Borges voltou para sua escrivaninha e deixou a cena.

O que acontecerá com Borges e Carminha? Qual a distância que neste momento os separa?

A sirene do carro de patrulha agita os ares e as pessoas. Automóveis sobem na calçada para dar passagem ao insistente gemido. Dentro, Moacir agarra o fuzil com as duas mãos e cerra os dentes. Ele está apavorado, mas ninguém há de notar. Gostaria que o trânsito se tornasse impenetrável, mas os veículos à frente se viram e vão abrindo caminho para o terror, para a morte. À frente, um tiroteio na certa, com os traficantes muito mais numerosos e bem armados. Mas o Sargento Gracinha, como o chamam pelas costas, odeia covardes. Quer todo o mundo se apresentando, atirando, se oferecendo às balas. Carminha está passando quando é retirada de seus pensamentos pela balbúrdia. Gente se joga no chão, se esconde atrás de carros, de postes, do que for, para escapar do tiroteio. Moa passa correndo, esbarra nela, quase a derrubando. Ele sobe, com um grupo, pelas vielas da favela. Rostos surgem das quinas e das janelas dos barracos e desaparecem rapidamente. Todas as portas se fecham, crianças choram, mães gritam desesperadas, as balas comem, granadas explodem. Moa está em um beco, ouve um tiro às suas costas, sente um calor no tórax, não compreende nada, seu peito mina um líquido grosso, quente, muito, muito vermelho. Vira-se. O cara continua apertando o gatilho, mas não sai mais nada. O cara está apavorado. Moa não pensa, só atira. Sempre odiei, pensa ele, enquanto entra em choque, ser chamado de Moa. Meu nome é Moacir! Moacir! Moacir, grita a sirene da ambulância, enquanto sua cabeça gira.

Talvez não tenha nada a ver com tudo isto o fato de um grupo de executivos estar almoçando num restaurante sofisticado quase à beira da Lagoa. Nem se pode dizer que tudo está acontecendo no mesmo momento, nem no mesmo lugar. As pastas pretas no chão, encostadas aos pés das cadeiras, estão abarrotadas de documentos, notas, projetos, sonhos de sucesso. Dentro delas, esquemas para derrubarem-se uns aos outros, atingirem metas, ganharem percentuais, garantirem o emprego, ganharem muito, muito, mas muito dinheiro mesmo, além de terem as contas pagas, o combustível e o telefone liberados, o cartão com um amplo crédito para os gastos diários. Coisa boa. Riem-se muito e apostam quem ficará com a Dany. Que está noiva e que ama Marino, que corresponde.

Marino toca na noite, acompanhando um casal que canta divinamente, mas que não consegue uma oportunidade de gravar. Nessa noite, não exatamente aquela, daquele dia, mas numa noite qualquer, enquanto Borges telefonava para pedir que lhe entregassem uma pizza, Moacir estava na unidade de terapia intensiva tentando sobreviver aos ferimentos. Carminha mancava, com a coxa ralada no muro chapiscado, pelo esbarrão. Num quarto escuro, um menino molhava o travesseiro por um passarinho morto. Acreditava, queria acreditar, que o espírito da avezinha voava alegremente nos céus do Paraíso.

Vejo as águas da cachoeira rolarem borbulhosamente pelas pedras, fazendo um chiado gostoso, frio, como parte deste mundo, deste Universo de nêutrons, prótons, elétrons, partículas atômicas sem fim, rolando pela imensidão numa bola de terra e água, azul, que vai para não se sabe onde, como se caísse num buraco imenso, num poço sem fundo, acompanhado de uma miríade de sóis e estrelas que ignoram para onde vão, tragados pelo tempo e pelo espaço.

Borboletas, pássaros, aves, minhocas, gatos, feras, peixes, bois, cachorros e cavalos, tudo misturado, cidades e florestas, campos e mares, montanhas e gelo, esperando que a história aconteça, que as pessoas se encontrem, que seus destinos se entrelacem, enquanto os astros se movem. As fábricas produzem seus gases poluentes, os carros lançam venenos nos ares, os esgotos estragam as águas e destroem toda a vida, escreve Borges. Onde iremos parar? E as gerações futuras? e Carminha? e Dany? e Marino? E Moacir? E - que ele não nos ouça - o Gracinha? e o garoto que Moa - droga, não me chame assim! - fuzilou no beco? e eu? E o menino que matou o passarinho e chora sem parar?

Os objetos e os acontecimentos realmente estão amarrados como o cenário e o enredo de uma novela, um novelo, uma corda enrolada. Nada é separado de nada, tudo tem conseqüência sobre todas as coisas, embora resulte em coisa alguma, pois, em dado momento, nada mais restará, daqui a anos, bilhões de anos, quando os diversos universos, que vagam pelo espaço, em rota inevitável de colisão uns com os outros, se encontrarem e explodirem. Aí, não tem Borges nem passarinho, apenas as cinzas.

A última coisa que se pôde ver foram os executivos saindo do restaurante, cada qual com sua pasta na mão, rindo-se, despedindo-se, pegando os carros, dando uma gorjeta para o manobrista e indo-se embora.

Não ficamos sabendo o nome deles, nem do manobrista. Como todos os demais, estarão com seus átomos, com suas partículas subatômicas, com os elétrons de suas pastas e de seus documentos, com a energia que restar da matéria das solas dos seus sapatos e do suor de suas meias, presentes naquela nebulosa que, um dia, será a poeira das estrelas.

Goiano Braga Horta

« Voltar