Morte no Interior
Ando sumida, dizem.
Também aparecer para quê? Meus amigos começam a partir desta para melhor, com tamanha pressa e eficiência, que me deixam curiosa. Prefiro, hoje, dar uma conferência para mil pessoas que falar de mim. Ando com preguiça para recomeços e a apreciação dos rituais da morte me pôs no meu devido lugar.
Raras são as pessoas com quem convivo pra valer, daquelas de se contar tudinho .
Menos raros, os superficiais encontros, pessoas com quem falo, pois não dá pra tirar, no susto da esquina, os "bons dias", "apareço sim" e os "meus pêsames". Esta sim! A grande expressão do maior acontecimento do interior.
É que por aqui morre-se muito de perto. De "sei lá", ou causa desconhecida, esta, uma verdadeira epidemia.
Claro, que a morte assim tão escancarada, gera, além da grande festa de confraternização que é o velório e todo um ritual em volta, os telefonemas, os detalhes sobre as causas e efeitos do fato...
.. e o defunto, enfim, tem sua vida aberta, manuseada como um livro de auto-ajuda..
Aparecem dívidas e dogmas de toda sorte. A cotação do ex-vivente sobe muito em especulações: amantes, virtudes e principalmente as safadezas. As manias e hábitos mais triviais ganham muito em prestígio e fascínio de todos aqueles em estágio de esquife, variando apenas, segundo o grau de poder, político, monetário ou de notório saber do falecido.
A escala de um leve sadismo sobe uns 10% dentre os produtos no mercado de eventos.
Ex-posto e principalmente exposto ao fuxico público, o morto este indefeso ou gozador é cercado sempre do sussurro da constatação, mil vezes ditas, mil vezes não entendida: "Pois é, tudo pra acabar assim! A gente não vale nada mesmo".
Estes fatos movimentam bastante o comércio local, gerando divisas para o município. Cresce bastante o consumo de pinga, produto básico, nobre e democrático. Líquido que ganha fácil da lágrima nos primeiros cem minutos de sentimentos rasos.
As boutiques, floriculturas, tele mensagens e companhias telefônicas também faturam bastante.
Deve ser por isto, que o morto, morre com um esgar de esfinge, verdade final adquirida ou dor? Sarcasmo ou aviso? Parece mais um "vocês que se danem!".
Não escrevo com ironia, mas com muito respeito pela filosofia de boteco, atmosférico-pegajosa, que ganha as ruas e espalha-se pelos becos, como um visgo invisível, sem discriminação de paralelepípedos, asfalto ou lama, deixando mais lento o andar das pessoas.
Daí um certo aumento de rodas de papo no meio das calçadas, atrapalhando alguns alienados transeuntes apressados. Todos falam muito, baixo e repetem à exaustão duas ou três frases prêt à porter para a ocasião.
Estou pensando nessa coisa toda, porque fui em dois velórios esta semana, sem contabilizar os anuais. Como disse uma tia a um parente que veio de longe e voltava para casa: “espere, tem dois que estão ó, ali,ali, no quase-quase..."
Éééé... Tanta verdade me assusta, não engata bem no meu academicismo barato e não combina com as rimas que faço para me esconder atrás das palavras...
Descobri que sou uma pessoa sem graça e sem assunto e invejo a desenvoltura das minhas primas que circulam com belas roupas nestas ocasiões, fatais ambas, elas e adjacências e sabem descrever detalhes da última moda..
Mesmo me esforçando, não me encaixo a tanta verdade e sinceramente, gosto mais assistir morte de celebridades pela televisão já preparando a pipoca quando soa o esperado som do plantão do Jornal da Globo.
Lembra-me, muito sutilmente o início dos seriados nas matinês de domingo, no interior.
Só não entendi até hoje, porque na televisão, o choro de "populares", desaba com tanta força, após a indução da resposta esperada, que vem de qualquer jeito, ou o repórter deixa o sujeito na maior sem-graceza, olhando silencioso pro microfone e pro repórter até o sujeito "entender" que tem de chorar. Isto é o que eu chamo de efeitos especiais.
No mais, acho que a morte no interior é que é morte de verdade. Mesmo a matada é morrida, pois tem um porquê, conforme os desígnios da natureza... E, acima de tudo, de Deus.
Humildes, as leis da dialética estão todas presentes num velório do interior.
Ali sim, fim é recomeço, comunhão, morte, semente que faz brotar rumores de vida, história enraizada que dá frutos.
Nada tem a ver com o estelionato de vidas, devido a guerras fabricadas, ou balas perdidas.
Todos fazem um grande inventário de suas próprias mentiras nestas ocasiões. E, se o defunto for importante, há o tipo especialista em disputar alça de caixão.
Por tudo isto, acho que a morte no interior, é um bom produto de exportação: original, artesanal, apreciado e gerador de divisas, inclusive para alimentar nossos corações carentes.
Quem sabe merecesse mais apoio de Ongs e instituições que nos ensinassem a morrer cara a cara com a gente, coroando com dignidade a vida.
No mais, sinto-me sem lugar, inquieta como cachorro sarnento.
Morro de medo assombração e uma leve hipocondria tem sido boa companhia.
Elane Tomich
Teófilo Otoni, 10 de dezembro de 2004