A NORMALIDADE DO ANORMAL
(DA SÉRIE - TENHO QUE ESCREVER PARA A LEILA)

Como é de costume, de tempos em tempos, quando acontece de me ausentar sem querer, aliás sempre que me ausento é sem querer, escrevo para minha amiga Leila e o faço não só porque adoro contar-lhe as novidades e saber sobre sua opinião, mas também porque através dessas cartas eu me sinto mais próxima, mato um pouco da saudade, sem falar sobre o aspecto benéfico e terapêutico. Leila não sabe ainda, mas fui contratada para lecionar sobre as figuras de linguagem na Universidade Gama Filho, campus Downtown. Uma turma deveras interessante, mas sobre a turma eu disserto em uma outra carta. O assunto desta é o porquê de meu curso previsto para durar seis meses durou apenas dois e para isso eu iniciarei contando-lhe alguns detalhes pertinentes.
Bem, para eu dar aulas para aquele "povo da Gama Filho", eu nunca pude usar jeans e camiseta como posso em outras universidades, porque os alunos não respeitam um professor que aparente mais "pobre e casual" que eles. Isso é colocado em pauta nas reuniões com os coordenadores, que pedem para que os professores evitem roupas básicas... Problema nenhum. Apesar de minha falência total, Leila sabe que adoro marcas e essas coisas tolas de burgueses e patricinhas — sempre que uso essa expressão "patricinha" lembro-me como é debochado o destino... Embora eu, Patrícia, seja mais fashion que sóbria nas escolhas das marcas que desfilo e para as quais faço propaganda gratuita, quando ia dar aula na Gama Filho vestia ternos, salto agulha, cabelo preso, leve maquiagem, bolsas dessas cujo "logo" não se contenta em apenas estar lá, mas grita e berra feito louco na certeza de marcar presença. Vestida assim, quem me via pensava — Lá vai uma executiva "podre de rica". Não mais r ica, mas limpinha era a verdade entretanto. De rica só restou-me a pose, aliás a minha mãe vive repetindo — Patrícia, para você voltar a ser rica, só falta o dinheiro, porque esnobe você não deixa de ser mesmo!. Ela também diz que para eu ter dinheiro agora só "ralando" muito, já que "caída" como estou, golpe do baú nem pensar, mas mãe vocês sabem, diz muita bobagem. O fato dela ter me apelidado de queijo-minas-sorado nada tem a ver com eu estar branca, mole e cheia de buracos. Mas ela tem razão sobre a minha pose — a casa fora, o apartamento, as viagens anuais, o carro que trocava todo final de ano estão um pouco longe da minha realidade atual. Talvez eu seja a expressão "Isso não te pertence mais" encarnada... Bem, voltando ao assunto: lá ia eu linda e loira dar aulas... Só que ia de Van, porque meu lindo 306 0km foi torrado, para evitar a falência total, junto com todo o resto. Minhas jóias, por exemplo, quando alguém pergunta — Ué, você não tem mais coragem de usar suas jóias? eu respondo — Eu as mandei para o spa das jóias, o "PCE", para polimento e tratamento. Estão no spa faz dois anos - haja polimento! O nome do spa, o PCE, só entre nós, significa "Penhor da Caixa Econômica"., ou para os íntimos — prego.
Como disse, ia até à Gama Filho de van. Ia e voltava. Um dia, saindo da universidade andei mais uma vez como uma condenada em cima daqueles saltos agulha, em direção ao ponto da van, que como eu só tem pose, porque o nome daquilo sempre foi, é e será Kombi. Entrei, sentei e vinha tranquilamente pela Avenida Niemeyer, quando o trânsito começou a ficar lento...
Leila sabe, sou descrente da violência urbana, acho tudo um grande exagero e não me preocupei com o detalhe do súbito engarrafamento. Seguia viagem tranquila e chique recostada no encosto da Kombi-van. De repente o motorista parou em uma freada brusca, deu uma ré abrupta, tomou distância, parou de novo e começou a acelerar em direção ao engarrafamento. Lembro-me, quando ele fez isso, assim, do nada, eu, que estava sentada lá atrás sem o cinto, quase parei no colo do homem e pensei — Ih, meu Deus, ele é um homem bomba e vai se jogar contra os carros parados! Vamos todos explodir ! Porque você sabe, uma menina acostumada às coisas do primeiro mundo, achou que estava em Nova Iorque...
O homem acelerou, acelerou, acelerou e ao chegar bem perto do carro parado à frente deu um cavalo de pau numa velocidade que jogou minha cabeça para trás e para o lado com tanta força, que quando ela parou, esmagou meu nariz contra o vidro fechado da janela da Kombi-van. Então, ainda com o nariz grudado no vidro, ele começou a a dirigir no sentido contrário, na pista contramão!
Só então ouvi os tiros vindos sabe Deus de onde e eram tantos que parecia final de copa do mundo com Brasil campeão! O nariz ainda estava grudado no vidro e e u observei que todos os carros começaram a fazer a mesma coisa, correndo todos o risco de se chocarem com os que vinham no sentido oposto. Loira, "lindérrima" e com uma dor insuportável de um nariz quase quebrado enfim raciocinei — Tiroteio no Vidigal!!!!!!!!! Desgrudei o nariz e gritei: bala perdidaaaaaaa! e me joguei no chão da Kombi-van! VEJA BEM; EU, MEU TERNO ARMANI, O SAPATO CHANEL SALTO 10, AGULHA, A BOLSA LOUIS VUITTON, TUDO ISSO ESPARRAMADO NO CHÃO DE UMA KOMBI-VAN!
Leila deve estar rindo... Pois bem, isso não é nada. Rir você vai rir agora, quando eu disser que eu fui a ÚNICA a me apavorar, gritar e me atirar, me espatifando e me embrulhando com os tapetes emborrachados do chão da Kombi-van. Ninguém fez nada. Nenhum movimento mais bruto, nenhuma exclamação, sequer uma virada de rosto mais rápida. Só eu entrei em pãnico e me embrenhei entre as pernas dos outros passageiros e os tapetes emborrachados. A única reação esboçada pelos ocupantes da Kombi-van foi um olhar esquisito para a minha bunda "pro ar", a cabeça embaixo da Louis Vuitton, salto agulha 10 espetado entre os bancos, corpo embrulhado e meu grito histérico e sem grife alguma  — Bala perdida! Bala perdida! Todos, muito mais acostumados que eu com as coisas do cotidiano de quem frequenta Kombi-vans, tiveram reações calmas e controladas.
Uma senhora pegou o celular, discou e teve o seguinte breve diálogo com quem atendeu — Fulana? Você está vendo a TV? Se passar alguma coisa sobre o Vidigal, não se preocupe, porque já estamos escapando, tá?
A menina ao lado comentou — Droga! É um saco estudar na Barra e morar na zona sul! e fez beicinho. Leila, ela fez beicinhoooooooo!
O motorista da Kombi-van falou com alguém pelo rádio — Cicrano? Eu vou ter que ir por dentro, porque o Vidigal fechou, ok?
A tranquilidade de todos não diminuiu meu nervoso, mas aumentou terrivelmente a minha vergonha sob os tapetes. Na minha insensatez, acreditei que aquela borracha fosse um escudo poderoso contra as balas. Aguns minutios se passaram até que eu pudesse me recompor. Então, muito chique e educadamente, como todos na Kombi-van pareciam ser, resolvi encarar as balas e a situação com a normalidade anormal dos que me rodeavam. Levantei, me endireitei, passei a mão pelo cabelo preso todo desgrenhado, fingi controle absoluto do meu pavor, ensaiei uma expressão facial que dizia que nada havia acontecido e fiquei observando o motorista fazer manobras inacreditáveis como se eu fizesse parte de um elenco de filmes de ação americano com perseguições de carros. Um filme ruim.
Com a dor do nariz quase me enlouquecendo e o medo de morrer assim, por uma coisa idiota, incorporei a mesma personage m do "tudo está perfeitamente normal e bem" de todos os companheiros de viagem, peguei o celular e liguei para minha mãe a cobrar porque meu celular também só tem pose e nehum crédito. Minha mãe o chama carinhosamente de Pai de santo — só recebe. Tentando não tremer a voz comuniquei — Mãe, estou em meio a um tiroteio no Vidigal... Não — quando eu ia dizer o "se preocupe" do final da minha frase, escutei-a gritar para o secretário — Naldooooooo! Liga a TV, que a Patrícia vai aparecer!. EU NÃO ACREDITEI!!!!!!!!!!!!. Pigarreei e repeti
— Mãe, estou em meio a um tiroteio no Vidigal...
— Já ouvi, já liguei a TV! — MÃE! NÃO SE PREOCUPE, PORQUE ESTAMOS ESCAPANDO E VAMOS VOLTAR PELO TÚNEL QUE ESTARÁ TRANQÜILO!!!!!!!
O rapaz ao lado comentou em tom displicente
— Dificilmente. Normalmente é guerra entre a Rocinha e o Vidigal...
Retribuí o comentário com um esboço de sorriso. Não podia sorrir abertamente por vários motivos mas os principais eram que os lábios tremeriam e me denunciariam e o nariz ficaria ainda mais torto. Ouvi um chiado no telefone e a bateria acabou. Sem crédito, sem bateria. Qual apelido minha mãe daria ao aparelho agora? Rezei todas as preces que conhecia em silêncio. Não me pareceram suficientes. Inventei algumas, improvisei.
O motorista, que hoje, quando penso, imagino chamar-se GABRIEL, porque além de loirinho, cabelos cacheados e olhos azuis dirigia como um mestre e agia com paz abençoada, achou uma forma de escapar das balas e trouxe todos com segurança, para além do túnel, desviando de barricadas, de gente correndo sem parar, polícia para todos os lados.
Fui largada na Praia de Botafogo. Chovia. Chovia muito.
Molhada, desgrenhada feito pinto no lixo, salto e nariz tortos, toquei a campainha, dei boa noite, perguntei se minha mãe me vira na TV, nem ouvi a resposta, tomei um banho e fui dormir.
No dia seguinte pedi demissão.

Patrícia Evans

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