DE ELOQUÊNCIA VULGAR

          Não venho aqui cair redundantemente no discurso pedagógico que assola a pobre história da educação no Brasil. Pobre não por lhe faltar riqueza, o que, aliás, tem em abundância, mas por não ter ou gerar credibilidade e incentivo a quem de direito precisa e está nos sinais de trânsito vendendo amendoim ou fazendo piruetas. Pobre por não ter força para sair das garras das feras mansas que babam sobre o dinheiro derramado e matam os sonhos de meninos e meninas da periferia. Provavelmente como diria Rui Barbosa aos moços “vulgar é ler, raro é refletir...”... Então procurando refletir e pensar sobre as coisas da vida e o mundo por inteiro, procuro manter distância daqueles certinhos, titubeantes que jogam todo o peso do fardo educacional nas costas do proletário professor. Sabemos que em todos os lugares profissionais o bode expiatório é sempre bem-vindo, seja para ser assado ou cozido. Porém a indigestão ronda a mesa, e a gula é inimiga da parcimônia.
          Um amigo meu, professor da área linguística, profundo conhecedor das letras, revoltou-se com a amarga profissão que exercia e explodiu. Bradou alto:
           — Se soubesse que seria tão humilhante constar presença na sala de aula, desistiria do curso de Letras... Desistiria... Faria Pedagogia e ficaria como essas coordenadoras cortando, colando papel e falando da vida dos outros... E outro dia ela falou que o professor de História fedia. Mas que mulher mais asquerosa... Eu realmente estou revoltado, Paulão.
          Evidente que a ira do meu amigo não era generalizada, pois ele namorava uma pedagoga. Era uma bela garota, e segundo pude observar eles se amavam muito. Sem dúvida, era uma persona muito inteligente, sensível e linda. Aliás, não devo relevar somente a namorada do meu amigo. Pois, como exemplo, devo unicamente salientar o maior dos pedagogos brasileiros, o mestre Paulo Freire. Que, aliás, pregava já em alta ditadura militar “O compromisso do profissional com a sociedade”. Há um momento em que o mestre Paulo Freire abre o debate justamente com a palavra compromisso. O compromisso de estudar, pescar como Pedro o conhecimento que está no ar e passar adiante para todos. Evidente que assim como ele, temos dezenas, centenas e até milhares de pedagogos e/ou coordenadores que são deveras competentes e estudiosos. Mas, meu amigo passou uma situação vexatória, indignante, inacreditável com uma dessas tais profissionais da educação que ao que me parece quando foi pescar, morreu, afogou-se.
           Certa vez, contou-me que ao chegar a sala dos professores encontrou a coordenadora debruçada sobre a mesa, com cara de interrogação. Desconfiado, pescou o que estava escrito e percebeu o entrave. Esforçou-se mais e conseguiu enxergar a interrogação estampada no rosto da atônita criatura. Era a palavra INCREMENTAR. Astuto, como todos que trabalham com palavras, sentiu que seria interpelado pela ilustre que ocupava um posto hierárquico acima dele. E a questão veio retumbante:
          — Professor, encrementar significa colocar? E se escreve com ene ou com eme ?
          Meu amigo explicou, primeiramente, que não era encrementar e sim incrementar, em seguida disse-lhe que se escrevia com eme e ene, por sinal com dois enes, porém cabia a quem estivesse escrevendo decidir onde por os enes e emes incrementados.
          — Mas como, professor? Não tem til?
          Meu amigo, sarcasticamente com um riso no canto da boca, explicou que ele, o tio, tivera um acidente e por infortúnio, coisa do destino, veio a falecer, mas que sua tia estava bem, tinha uma boa pensão, bom emprego e um amante rico. Continuou a falar-lhe do tio, boa pessoa, boa alma, espírito de luz, falou até da grana que lhe arranjava de quando em quando. Colocava até os primos no discurso, até que lembrou-se do compromisso de Paulo Freire e da reflexão de Rui Barbosa, por instantes teve clemência e ponderou. Ninguém tinha que saber tudo. Mas quando foi interrompido pela chorosa professora, que com tantos incidentes incrementados pelo meu amigo ainda deu-lhe os pêsames, achou que aquilo era demais. Ele esperava que a professora mudasse de assunto ou levasse a conversa para um atalho diferente, mas... A professora entretanto não esqueceu do jocoso problema, e outra vez fantasticamente, indagou:
          — Ó professor, que pena do seu tio não é? Mas é isso mesmo a vida continua... Mas não entendi porque o senhor vem me falar dessa “catastrófe” só agora... Quando nós conversávamos a respeito de encrementar...
          — Incrementar, professora, incrementar...
          Meu amigo voltou a explicar que a palavra sofre três nasalidades, tem um encontro consonantal e é um verbo regular. Ao terminar, não teve dúvidas de que a interrogação acentuava-se no rosto ignóbil e lamentou a docência sem compromisso e sem reflexão que se alastra pelas salas de aulas fora a fora do país . Rosto ignóbil e expressão calhorda, desprezível, frente a frente, os dois. O meu amigo lembrou-se de Pateta, Peninha, Hortelino e Frajola olhando a triste fronte apedeuta. Sentiu o ego massageado, sentiu-se no podium letrado, no trono a olhar seus irrelevantes súditos suplicando-o por um copo de conhecimento e degustava a vingança gelada como sorvete, incrivelmente fumegante ao olhar aquela criatura insipiente
          — Professora, a palavra incrementar vem do latim INCREMENTARE, significa: Desenvolver, aumentar, excitar, provocar animação... Tem um ene no começo, um eme no meio próximo ao outro ene, aproveito a situação e recomendo-lhe uma reciclagem... Sempre é bom, pois a Língua é um mecanismo vivo e como tal sempre está variando, passar um olho na gramática não faz mal a ninguém, não é?
          A criatura, coitada, pasma e boquiaberta olhava para ele com um nada na expressão, não sabia se sumia ou se virava ao avesso, calou-se e retornou a recortar e colar papéis...

Carlos Vilarinho

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