MEDO DE ELEVADOR
Acordei sabendo que, com ou sem imaginação, seria hoje. Dispus-me a ficar atento a todo e qualquer fragmentos do cotidiano: uma mulher que, nervosa, não dá passagem a meu carro; o menino pedinte com a mesma idade de meu filho; a moça bonita no ponto de ônibus. Guardei todas as impressões; matéria de carpintaria. Hoje é dia. Nenhum remorso por declinar o convite para um chope com os amigos; aleguei trabalho acumulado, eles entendem, todos têm seus dias de muito trabalho e todos, também, mentem quando precisam.
O dia transcorreu como tantos outros, deixando-me a certeza de que, outros tantos semelhantes ainda virão pela frente. Um dia normal, padrão, previsível, a não ser pelo alento que hoje seria dia. Nenhum registro, nenhuma briga, nenhum assalto, as mesmas notícias: um atentado em Bagdá - 30 ou 130 mortos, não sei ao certo; um ataque de Israel ao Líbano, mais 40 mortos - esta eu ouvi, tenho certeza foram 40 20 delas crianças; descobriram mais 10 deputados envolvidos na máfia das sanguessugas; enfim um dia normal como qualquer outro. Temo não ter matéria-prima para o meu trabalho noturno.
O trajeto do escritório para casa não leva mais que 10 minutos, quiçá maior fosse o percurso e teria eu a oportunidade de registrar um derradeiro fragmento, um argumento definitivo, um insight incontestável e original. Mas nada ocorre, é um típico dia normal e estéril.
Chego ao meu prédio, estaciono o carro na mesma vaga de sempre, dirijo-me para o mesmo elevador. Encontro uma mulher na porta do hall de entrada.
Estranho o fato de ela estar parada, do lado de fora no hall - não lembro de ter visto alguma pessoa parada ali. Quando muito, puxando pela memória, vi em dias de chuva, pessoas no lado de dentro do estreito hall esperando algum carro se aproximar para mitigar o efeito da chuva. Mas hoje não chove.
Aproximo-me e aproveito para observá-la: morena, olhos negros, cabelos encaracolados, calça jeans desbotada e uma camiseta branca. É uma mulher bonita e básica, como o meu dia. Dou-lhe uns 30 anos. Nunca a vi no prédio; logo deve ser uma visitante. Tinha consigo uma bolsa de couro, enroscada em um dos ombros e pressionada contra o peito. Seu olhar é distante e mira o portão social, bate a ponta do pé compassada mente. Pergunto-me: O que faz aí parada? Perdeu a chave? Espera o namorado? Segue o marido na espreita de um flagrante? Minha imaginação está solta. Passo por ela meneando a cabeça ensaiando um cumprimento de boa noite, mas ela não desvia o olhar do portão e, sem contato visual, perco o mote. Pena, pois queria olhar os seus olhos; somente eles revelar-me-iam algo: angústia, apreensão, ou ódio. Aciono o botão do elevador e, enquanto espero, observo-a pela porta de vidro; a silhueta é interessante. O elevador chega, mas não entro, fico inerte mais alguns segundos esperando algum sinal que me permita entender o que se passa
na cabeça daquela mulher. Perco o elevador, ele vai atender a quem, de fato, tem mais o que fazer do que cuidar da vida dos outros. Num relance vejo-a olhando o relógio de pulso e isto me dá uma luz: ela espera alguém, tem um encontro marcado, com certeza. O elevador chega e, desta vez, sou obrigado a embarcar porque o último passageiro num ato cordial segura a porta aberta para que eu entre. Sinto não poder dizer-lhe: "Pode deixar, vou pegar o próximo", pois seria, no mínimo, estranho, muito estranho. Subo para o nono andar e entro em disparada em meu apartamento, corro para a janela da área de serviço e com uma manobra arriscada consigo ter a visão turva da mulher.
Ela continua parada, agarrada a sua bolsa. Ligo o computador, enquanto o Windows é carreado, meu pensamento volta à morena do hall. Não me contenho e corro novamente à janela na intenção de vê-la uma última vez. Ela não está.
Corro em direção ao elevador, acompanho pelo visor digital o movimento dele: 2º andar, 3º, 4º, 5º, 6º, 7º, 8º, meu coração acelera, 9º, respiro fundo, ele continua 10º, começo a desanimar quando lembro que são 20 andares, mas ele pára no décimo primeiro. Num misto de curiosidade, falta de tino e de bom senso, subo correndo pela escada de emergência os dois andares que separam minha dúvida de minha resposta. Chego a tempo de vê-la abrindo a porta do apartamento 113, mas o esforço que fiz foi tanto que chego trôpego, quase tombando, com o coração na mão e respirando com dificuldade A mulher já fechava a porta quando me vê e, com apreensão no olhar, abre-a novamente dirige-se a mim. Minha cara não deve ser das melhores. Paro, encosto-me na porta corta-fogo e tento me recuperar, não consigo. O coração teima em ficar disparado, entendo os seus motivos: o esforço insano que fiz e a falta de uma justificativa para dar à morena que se aproximava.
"O Senhor está bem? Quer um copo d'água?", pergunta-me com uma voz doce e preocupada.
"Sim", aquiesci.
"O senhor mora aqui? Subiu pela escada? Porque não usa o elevador?", perguntou-me.
"Sim, moro...tenho medo de elevador... prefiro subir pelas escadas", respondi sem condições de zelar pela lógica de minhas palavras.
Acompanhei-a até seu apartamento e, enquanto bebia um restaurador copo d'água, tive minhas respostas. Os móveis embalados, as caixas e os muitos pacotes que congestionavam a sala revelavam a nova moradora e, mais conclusiva ainda, a pizza recém colocada sobre a pia denunciava o motivo de sua espera no hall: norma do condomínio, os entregadores de pizza não podem subir aos apartamentos. Na parede, um antigo prego que provavelmente lá estava sustentava um porta retrato - com vidro quebrado - onde apareciam abraçados a minha mais recente vizinha - alguns anos mais nova - e um rapaz de bigode, que de cara, antipatizei. Agradeci, e voltei ao meu apartamento, pela escada. Lá me esperava o computador com Windows carregado, e, obediente como um cachorrinho, aguardava o meu comando.
Lembrei-me que hoje era dia, era dia de escrever. Desta vez não foi necessário muito esforço para escolher um tema para escrever, tinha-o em mente: A história de uma bela mulher que se separa de forma tumultuada, se muda para outra cidade, e ainda se recuperando, se envolve com um vizinho, que mora dois andares abaixo e que, inusitadamente, tem medo de elevador.
Claudinei Silva