Marisa Monte no particular

           Van entupida! Éramos uma turma de uns sete ou oito jovens metidos numa van alugada. É impossível calcular hoje o preço que pagamos na época. Só me recordo que a excursão foi barata e de certa forma engraçada. Partimos de Juiz de Fora às cinco da tarde de um sábado nublado rumo ao Rio de Janeiro, para assistirmos ao mega-show “Memórias, sonhos e declarações de amor” de Marisa Monte, no extinto ATL Hall.
           Para entrarmos com bastante antecedência no clima do espetáculo, a van arrancou com a canção mais sensacional do momento “Amor I love you/Amor I love you/ Amor I love you/ Amor I love you”. Depois iam seguindo outras menos melosas, mas daí o cd acabava e voltava de novo para a primeira faixa nobre “Amor I love you/Amor I love you/ Amor I love you/ Amor I love you”. O que me fazia suportar tamanha tortura sonora era o bom humor da turma e a tentativa de ir buscando pistas do universo existencial e literário da cantora, já que o título do cd era parecido com o do livro de memórias de Jung: “Memórias, sonhos, reflexões”.
           Eu ia folheando o encarte bonito que me chamava atenção pelas fotos de capas de livros e cds:Virginia Woolf, Machado de Assis, Khaterine Mansfield, Tom Jobim, Jamelão e José de Alencar. Ouvindo com mais atenção e menos pré-conceito, identifiquei um trecho do “Primo Basílio”, do Eça, dito por Arnaldo Antunes na enjoadinha “Amor I love you”: “Tinha suspirado, tinha beijado o papel devotamente! Era a primeira vez que lhe escreviam aquelas sentimentalidades, e o seu orgulho dilatava-se ao calor amoroso que saía delas, como um corpo ressequido que se estira num banho tépido; sentia um acréscimo de estima por si mesma”.
           Chegamos a tempo no show e ocupamos a última mesa. Com meus óculos quebrados, eu só via uma formiguinha toda preta e serelepe no palco, a mil anos luz de distância. Entre a formiguinha e os telões, optei pelas imagens projetadas que ficavam ao lado do palco.
           Visualmente, tudo era impactante. Um dos momentos inesquecíveis foi quando Marisa, com a límpida voz de cristal puro, cantou “Perdão você”, de Carlinhos Brown e Alaim Tavares. A letra da canção sugeria superposições de cores e imagens que o espetáculo pirotécnico deu conta com primor plástico: “Cores imagens/cores imagens/cores imagens/cores/originais as flores demais/ as cores e mais amores”.
           Desde os encantos e desencantos desse espetáculo, e principalmente após o infantilóide “Os tribalistas”, fiquei distanciada do trabalho de Marisa Monte, embora isso fosse quase impossível, devido à insistência das rádios de todo o Brasil em tocar: “já sei namorar/já sei chutar a bola/ agora só me falta ganhar/ Eu sou de ninguém/ Eu sou de todo mundo/ E todo mundo me quer bem”.
           É difícil classificar Marisa Monte e manter o rótulo de “cantora eclética” que marcou sua estréia no final dos anos 80. Sua afinação e bom gosto estético apareceram logo no primeiro “disco”, com a gravação antológica de “Bess you is my woman now” de George Gershwin.
           Semana passada quebrei minha resistência e me entreguei à audição de “Infinito particular” , novo cd de “canções pop” de Marisa, que foi lançado simultâneamente com o “Universo ao meu redor”, inteiramente dedicado ao samba.
           Valeu vencer a resistência. “Universo particular” é um álbum que repete algumas canções da “fórmula de fazer sucesso”, mas que também traz um trabalho de considerável depuramento. Com capa sóbria, toda preta e letra cinza no centro,o cd traz arranjos de Philip Glass (autor da trilha sonora do filme “As horas”), Eumir Deodato e João Donato. A voz de Marisa é impecável: suave, madura, puríssima. Faz lembrar a de Gal Costa nos idos de “Domingo”.
           Ao lado de Bebel Gilberto, Seu Jorge, Bossacucanova e Los Hermanos, Marisa Monte está buscando uma nova representação da MPB: seria de fato a MPBPOP? Há controvérsias. “Infinito particular” apresenta uma linguagem mais feminina, que se diferencia dos trabalhos anteriores, em que haviam arranjos mais carregados e percussivos. O que parecia “infantilismo”sem propósito em “Os tribalistas”, neste faz sentido, como a canção “O rio”, possivelmente dedicada ao filho Mano Vladimir: “Ouve o barulho do rio, meu filho/ Deixa esse som te embalar/ As folhas que caem no rio, meu filho/ Terminam nas águas do mar”.
           A pérola do cd é “Pernambucobucolismo”, interpretada pela voz e baixo de Marisa Monte e a percussão de Dadi. Ela consiste num diálogo com a vertente tropicalista, aquele “objeto identificado” que sempre influenciou sua produção: “Eu vou fazer/ Um movimento amor/ Uma canção para inventar o nosso amor/ Eu vou fazer/ Uma revolução/ Eu vou pra Londres, vou pra longe/ Sei que vou/ Onde luar/ Não há igual aqui/ Igual aqui não há/ outro lugar/ eu sinto bucolismo/ Pernambucobucolismo”.
           Lembro-me que na volta daquela excursão ao Rio, noite alta, ainda se ouvia insistentemente dentro da van “Amor I love you”. Não havia pernambucobucolismo.

Daniela Aragão

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