Espírito das cidades

Abro o “blogue” do meu amigo Osair Manassan e leio lá uma crônica excelente sobre o próprio autor, por si mesmo qualificado como um boêmio abstêmio e me delicio com a análise que faz dos boêmios bebuns e de si próprio. Concluo a leitura e permaneço sob o efeito dela, apreciando o efeito retardado tal como alguns animais de peçonha que, ainda que lhes arranquemos a cabeça, continuam se mexendo.

Isso se dá nos momentos especiais do amor de alcova com a pessoa mais querida, quando o prazer do colóquio se estende para além dos contatos. Fica na alma, mais que na mente, a nos lembrar que a alegria não se faz só de momentos, mas de sua continuidade. É assim a arte, a música, a poesia. Aliás, não me canso de chamar “poesia” a alma das artes: não basta saber dançar, há que se ter poesia; não basta escrever, há que se ter poesia; não basta pintar nem esculpir, muito menos tocar um instrumento, sempre há que se ter poesia.

Encontro-me com o velho amigo Paulo Bittencourt e ele, comentando nossos escritos (os meus, os dele e os de tantos que fazemos registros de fatos quotidianos das cidades), resume: “Penso, às vezes, que constituímos a alma das cidades”. Vejam que ele usou o singular: a alma das cidades. Sim, também acho que as cidades têm uma só alma. O que muda é a cor, ou o humor, de cada uma delas. Ou de cada esquina numa mesma cidade, ou de cada momento...

O fato é que vivemos essa alma urbana, tal como a alma dos campos desde que neles haja o homem (o homem, não o macho, mas o homem espécie). Engalanam nossos sentidos a cor das flores (ah, que é tempo de ipês floridos!), os tons de verde nas relvas e nas frondes, nas plantações dos grãos e do azul matizado de nuvens ralas ou mesclado de branco único, estampado de cinza-chumbo que prenuncia as chuvas.

Leio Ulisses Aesse e Vânia Lourenço, Leda Selma e Luiz Fernando Veríssimo, Ursulino Leão e Zé Mendonça, João Ubaldo e José Luiz Bittencourt (coincidentemente, pai do Paulo, que citei linhas acima) e viajo no tempo até Nelson Rodrigues, Adalgisa Néri e Sérgio Porto, José J. Veiga e Bernardo Élis. O que seria dos nossos jornais e das nossas almas urbanas sem as crônicas de cada dia?

E repito para mim o que deixei registrado num discurso (recepção a Leda Selma) na Academia Goiana de Letras: a boa crônica implica poesia. Porque é poética a alma das cidades, a alma dos dias, a alma dos nossos sentidos a perceber um tema. E, daí, posso afirmar: não se é, jamais, bom cronista sem que a poesia seja essência do escriba. Uma crônica sem a têmpera poética perde-se na alvura do papel, tal como um som de louça quebrada não é música.

Eis porque, paciente leitor, corro para aprender a cada dia, em cada leitura e em cada conversa, em cada encontro com amigos: quero, um dia, me sentir cronista, e não um mero escrevinhador de coisas avulsas. Enquanto não o consigo, por favor, continue paciente comigo. Prometo aprender.

Luiz de Aquino
(GO)

« Voltar