O BÊBADO DO BECO
Já que estão aparecendo por aqui diversas figuras estranhas, resolvi falar sobre o bêbado do beco.
Devo dizer de início que, na realidade, eu nunca o ví. Apenas o escuto gritar ensadecido em pleno delírio alcoolico palavras que nem sempre devem ser desprezadas.
Confesso que uma noite (é sempre à noite que a sua voz aparece!), quando eu já estava entrando naquela região estranha que antecipa o sono profundo, ouvi-o gritar indignado que o povo unido jamais seria vencido.
Talvez você achem que esse é um dito normal, dezenas de vezes escutado em passeatas de sindicatos, comícios revolucionários ou na voz de políticos inescrupulosos em gritos amplificados pelos insuportáveis carros de som que invadem a cidade em épocas eleitoreiras.
Mas, àquela hora da noite, quando o silêncio já se prenunciava e quando muito apenas escutávamos o choro das atrizes da novela das oito horas, aquele grito soava deslocado e incompleto aos meus ouvidos.
Num ato impensado, pulei da rede e corri para o beco na esperança de ainda vê-lo gritando em voz alta outras palavras de ordem ou mesmo alguns palavrões cabeludos que também fazem parte da seu jargão inconfundível. Desci as escada em grande correria (não dava para esperar o elevador), pulando os batentes como um cabrito novo que descobre a planície pela primeira vez e entrei no beco escuro, ansioso. Para minha surpresa, ali encontrei apenas um vira-lata vadio roendo em atitude de grande felicidade uma canela de galinha roubada de alguma lata de lixo.
Nenhum sinal do bêbado alucinado ou da sua voz de deus nórdico.
Perguntei aos transeuntes que por ali passavam se alguém havia visto ou escutado aquela voz de trovão que se pronunciava em nome de uma
possível unidade popular. Olharam-me como se eu estivese louco.
Desisti e voltei à minha rede no terraço. Fiquei a matutar as minhas dúvidas e com vontade de conhecer aquela voz misteriosa e bêbada.
Um dia, quem sabe, ainda o encontro de bobeira no beco e então poderei dizer-lhe o quanto lhe admiro e o quanto concordo com as suas palavras insensatas de bêbado.
Clóvis Campêlo