Estranho Idioma do Amor
Era nos momentos mais íntimos, quando estavam os dois "enfim sós", geralmente nus na cama, que eles conversavam através daquele estranho idioma. A língua que usavam não era oriunda de nenhum país exótico, não havia sido criada por nenhum povo antigo, era estranha porque era uma criação fonética deles mesmos. A mania de conversar naquele estranho idioma surgiu sabe-se lá quando, como uma brincadeira, sem motivo, sem programação, feito grama entre os blocos de concreto do engenheiro. Surgiu como um fruto da intimidade que todo casal desenvolve com o tempo e com o carinho. Funcionava mais ou menos assim, de repente, um pronunciando algo como: " Ismirifin difi rtifim di esquiri ticim xubicabagi guibi ", e o outro, como se tivesse compreendido o sentido semântico mais profundo de cada palavra, respondia, ou apenas continuava: " Simimhi himilidogji dojiduim dolim femelacidi ". E assim seguiam, por hora infinitas, se divertindo com os sons, como se fossem o próprio Deus no momento da criação. Quando estavam brigados, porém, o idioma parecia não funcionar, não comunicar, ficava totalmente inexpressivo. Quando estavam brigados, usavam mesmo o português oficial de telejornal, com palavras claras e precisas, travando quase que uma conversa de advogados. O estranho idioma só vinha à língua quando, inundados de calor doce e espiritual, não encontravam palavras formais pra expressar seus sentimentos. O diálogo tinha um cheiro verde, sempre novo, pois como o que importava não era ser exato, nem a compreensão racional, não se prendia em regras gramaticais nem concordância de dicionário. Contudo, havia sim neles uma frase memorizada que se repetia com freqüência. Às vezes, pronunciada após um olhar profundo, às vezes, rompendo o silencio estendido. Mas sempre com uma entonação muito própria e definida. A frase era " sim sim ". Quando um dos dois a pronuncia, o outro sentia um impacto imediato, pois logo supunha que estava ouvindo algo como "eu te amo". Supunha porque quem ouvia a frase não tinha a mesma certeza de quem fala um idioma que passa de pai pra filho. Ao mesmo tempo em que " sim sim " era "eu te amo", "sim sim " não era "eu te amo", "sim sim " era, catedraticamente falando, nada. Aqui entrava mesmo uma questão de fé ou de loucura, pois nenhum dos dois tinha certeza se " sim sim " realmente significava "eu te amo". Poderia muito bem significar qualquer outra coisa na cabeça que não era sua. Nunca haviam testado a frase com metodologia cientifica. Aliás, testá-la era tudo que eles pareciam não querem, pois oportunidades não haviam faltado. Perguntar um ao outro sobre o valor semântico de " sim sim " na linguagem de telejornal, seria retirar-lhe o valor intimo, seria retirar-se do paraíso e perceber que estavam nus. Assim, " sim sim " era "sim sim ", compreendido, adorado e respeitado pelo seu mistério e desconhecimento. E isto lhes bastavam. Aliás, lhe faziam transbordar.
Marcelo Ferrari