“POEMA SUJO”, 30 ANOS
O “Poema Sujo”, de Ferreira Gullar (Ed. José Olympio, Rio, 2006), está comemorando os seus trinta anos de publicação. Eu ouvi o poeta ler algumas passagens, em agosto deste ano, na 4ª Flip. O poema permanecia forte, fervendo de calor, de de sangue quente correndo-lhe nas veias. O público, de boca aberta. Olhos baixos, reverentes.
Ouvi também Adélia Prado, um dos grandes poetas de hoje. A mulher é cativante. A poesia é, ainda, de qualidade. Mas, estranhamente, envelheceu. Deixou-me frio, nenhuma vibração. Não era mais novidade. Repito sempre Ezra Pound: “Literatura é novidade que permanece.” Os bons vinhos depuram-se com o tempo, mas não a poesia de Adélia. Eu me lembro de quando lançou o seu primeiro livro, “Bagagem”, em 1974. O impacto foi a estranheza da sua linguagem. A sua poesia drummondiana-católica chocava, agradavelmente. Será que nos acostumamos, ou envelheceu de fato? É ainda boa poesia, reconheço, mas não empolga mais.
O mesmo não se deu com o “Poema Sujo”. Continua recendendo o limo virginal de sua sujeira: recende poesia pura, conspurcada por aqueles tempos sujos – a ditadura militar, o poeta estava no exílio. Mas, algum tempo depois, li uma resenha dizendo que o poema envelhecera. Seria possível? Não costumo enganar-me. Quis tirar o caso a limpo: fui relê-lo. Eu daria a mão à palmatória? Embora pudesse, talvez, ser uma opinião discordante, o que não seria nada demais.
Mas o resenhista tinha razão. Foi o que pensei à primeira vista. Depois, analisei a questão devagar, passo a passo. Eu ouvira passagens fortes, na voz forte do poeta – que sabe dizer muito bem os seus poemas. Encontrei novamente essas passagens fortes, pujantes de vida. Um poema deve ter isso: vida. Não pode ser frio, letra morta – ao nascer, ou com o tempo, comprovando então que não era bom assim. O poema pulsa ainda, com sangue quente.
Mas o resenhista não deixava de ter razão. Outras passagens eram fracas. Um poema de umas setenta páginas pode muito bem ter algumas mais fracas. É comum dizer-se da vantagem do romance sobre o conto – que o romance pode ter imperfeições, e continuar sendo um grande romance. As imperfeições não o invalidam. O conto deve ser como o poema: um lapso, um mínimo deslize estraga-o. Como o poema, eu disse. Mas o “Poema Sujo” é um texto longo como um romance – suporta as imperfeições que o romance suporta.
Ferreira Gullar tem uma teoria interessante. A poeta serve-se da linguagem da prosa, que, num dado momento, por um estalo mágico, por um encantamento das palavras ao se encontrar, ou ao se desencontrar, torna-se poesia. As palavras criam imagens, encantam-se. Perfeito. Estranha um pouco dizer que se serve da linguagem da prosa, mas é o que acontece com ele, Ferreira Gullar. Escreve prosa, mas com palavras que se encantam: e voam pássaros, e voam pedras e pães, e bananas e pêras (da quitanda da sua infância, que carrega no bolso). Nós, poetas desajeitados, tentamos escrever em linguagem poética (nem sempre) à espera, à procura de que as nossas palavras também se encantem.
Mas houve palavras do “Poema Sujo” que não se encantaram. Continuaram sendo recordações da infância, ou grito de revolta pela perda do país da infância, mas não se tornaram poesia. Dou a mão à palmatória: algumas passagens do “Poema Sujo” envelheceram. Ou, lidas no calor da hora, não deixaram ver que eram apenas banais. Relatos de cenas de sexo, vulgares, que imaginação nenhuma eleva à categoria de poesia. Gullar tem muitas cenas em seus poemas que não se elevam da sarjeta da vulgaridade – tudo em nome do protesto social, é a sua dor que sangra nas palavras. Quando esse sangue vivifica as palavras, jorra a poesia, grande. Ninguém é perfeito, nem Gullar. Todos os poetas cometem os seus deslizes. Todos os poetas têm o direito de errar, fazer poemas fracos, até sem poesia. Às vezes a maior preocupação é a mensagem: é quando a mágica não acontece.
Gullar é um mágico maior. O “Poema Sujo”, com as devidas exceções, que confirmam a regra, está repleto de poesia maior, mágica maior. Só um exemplo: “É impossível dizer/ em quantas velocidades diferentes/ se move uma cidade/ a cada instante/ (sem falar dos mortos/ que voam para trás)” – e me calo, reverente.