CRÔNICA DE ANO-NOVO
“Teus ombros suportam o mundo e ele não pesa mais que a mão de uma criança”, disse o poeta. O menino todo tortinho, os braços finos, longos e tortinhos, a boca tortinha, babando de leve, os olhos com uma leve remela, me chama e tartamudeia algumas palavras. Depois de não entender por umas três vezes, me abaixo e o menininho ergue a mão e me acaricia os cabelos. A mão de uma criança me acariciava. Mais fraca do que eu, essa criança me envergonhava. Me dava uma lição, de humildade, e de sabedoria, que ela me ensinava a olhar onde estava a minha pequenez humana. Eu, um homem forte, sem grandes problemas na vida, vejo o mundo por meio de lentes sombrias, deixo-me abater por um nada, e a mão de uma criança me acaricia os cabelos. O menino não se sustinha em pé, as pernas finas e tortas eram muito fracas, mal ajeitadas para equilibrar aquele corpo frágil, mas a fraqueza da sua mão sustentava o meu mundo.
As guerras sufocam, os homens estão condenados a matar e morrer, aos horrores das trincheiras, que não se usam mais?, das baionetas, usam-se?, da faca no pescoço, na barriga, o sangue quente escorrendo, das granadas, das grandes bombas, das bombas sem tamanho, das armas químicas; nós nos auto-destruímos, o universo é uma casca de ovo prestes a esfarelar-se sob os nossos próprios tacões; apenas a mão de uma criança o sustenta. E como é pesada, a mão de uma criança. É muita delicadeza, é muita fragilidade, para ser esmagada com o sangue e o pus do mundo. O dia-a-dia monótono, as ações repetidas, sem sentido, por serem sempre as mesmas; somos o Sísifo de Camus rolando a pedra cotidiana para o alto da montanha, com os mesmos obstáculos, as mesmas alegriazinhas, tão iguais, que as esquecemos, o nosso mundo engolfado num ramerrão enjoativo, engulhante; apenas a mão de uma criança o sustenta.
Olho o céu azul, logo turvado por uma nuvem negra. Paira sobre o mundo uma nuvem negra: não custa nada, e a peste desaba, entra pelos corpos adentro, mata a todos nós; tanto progresso, as máquinas mais perfeitas, mas tirando o lugar do homem; haveria alimento para todos, roupa, casa, uma vida saudável, nada mais estaria faltando, não fosse o homem sentir a necessidade imediata, inadiável, de progredir a qualquer custo, mesmo ao custo da sua própria existência, que é sustentada apenas pela mão de uma criança. Meus ombros suportam o mundo, e sucumbem, estão no estertor de suas forças; é incompreensível, é humanamente demais; não pesa mais que a mão de uma criança, e somente a mão de uma criança, enquanto eu a sentir sobre meus cabelos, poderá sustentá-lo.
José Carlos Mendes Brandão