Uma visão após assistir a peça: A Dama e os Vagabundos
Recentemente recebi através da poeta Betha M. Costa, de Belém do Pará, dois convites de cortesia para assistir a peça: A Dama e os Vagabundos, que entrou em cartaz no dia 02 e sairá do SESC Ipiranga em São Paulo na capital no dia 30 corrente (nas quartas-feiras, às 21h). Os ingressos foram sorteados entre os colaboradores do site Blocos Online sob a coordenação de Leila Míccolis; confirmei com Sonia Kessar no celular a liberação das entradas conforme o indicado, tudo estava acertadíssimo na bilheteria, a Assessora de Imprensa fora muito gentil.
A minha prima e eu ADORAMOS a peça, parece que tinha sido escrita sob medida para quem escreve poesia e Vive com Poesia... os atores, na faixa dos trinta anos de idade, são extrovertidos demonstrando competência pois encenar Poesia exige intensidade, (por isto são premiados... e se não o fossem, nós na platéia os premiaríamos!!!); foram donos de uma hora e meia de cena esbanjando carisma e bom humor nas falas e nas canções. Quem tiver a oportunidade confira, "o contar" não expressaria a letra de Doce Vampiro de Rita Lee, encenada no palco
Sabe aquela peça que ao sair do teatro parece que o coração flutua junto a lua!?! Comédia Musical, sim e das boas, sem querer puxar a sardinha pois não deu chance para a palavra: Tédio.
Para mim, que rabisco "funcionou" como se estivesse retirando uma das páginas de Nelson Rodrigues, misturando a lembrança de Shakeaspeare em Romeu e Julieta, dentro das citações de Maiakovski, fazendo juz ao que está escrito no "folder" oferecido que traz a sinopse, "a viva peça" nos aviva a memória que vivemos encenando nossas máscaras e nos remete a um convite "dos bem-humorados aos mergulhos no mundo dos (des)encontros amororosos, recheado com seus truques... delicadezas e sarcasmos, jogos de sedução, confidências e alegrias entre corações partidos ou não..."
"Viajamos" entre passagens da vida e... em versos que não sabemos definir como surgem dentro de nós... mas que passam pelo pensar, alguns são transcritos remetendo a linguagem concreta dos sentimentos, os imortalizando.
De onde vem a Inspiração? Quem escreve assiduamente parece que aos poucos vai adquirindo a percepção de interior do "inconsciente coletivo" (Jung); a encenação no palco da poesia O Mito de Carlos Drummond de Andrade (com quatro rapazes e a exuberante atriz que não deixa nada a desejar) encanta na inter_calação de gestos e versos, grifei os que ficaram presentes na memória:
O mito
Carlos Drummond de Andrade
Sequer conheço Fulana,
Vejo Fulana tão curto,
Fulana jamais me vê,
Mas como eu amo Fulana.
Amarei mesmo Fulana?
Ou é ilusão de sexo?
Talvez a linha do busto,
Da perna, talvez do ombro.
Amo Fulana tão forte,
Amo Fulana tão dor,
Que todo me despedaço
E choro, menino, choro.
Mas Fulana vai se rindo...
Vejam Fulana dançando.
No esporte ela está sozinha.
No bar, quão acompanhada.
E Fulana diz mistérios,
Diz marxismo, rimmel, gás.
Fulana me bombardeia,
No entanto sequer me vê.
E sequer nos compreendemos.
É dama de alta fidúcia,
Tem latifúndios, iates,
Sustenta cinco mil pobres.
Menos eu... que de orgulhoso
Me basto pensando nela.
Pensando com unha, plasma,
Fúria, gilete, desânimo.
Amor tão disparatado.
Desbaratado é que é...
Nunca a sentei no meu colo
Nem vi pela fechadura.
Mas eu sei quanto me custa
Manter esse gelo digno,
Essa indiferença gaia
E não gritar: Vem, Fulana!
Mas como será Fulana,
Digamos, no seu banheiro?
Só de pensar em seu corpo
O meu se punge... pois sim.
Porque preciso do corpo
Para mendigar Fulana,
Rogar-lhe que pise em mim,
Que me maltrate... Assim não.
Mas Fulana será gente?
Estará somente em ópera?
Será figura de livro?
Será bicho? Saberei?
Não saberei? Só pegando,
Pedindo: Dona, desculpe...
O seu vestido esconde algo?
Tem coxas reais? Cintura?
Fulana às vezes existe
Demais; até me apavora.
Vou sozinho pela rua,
Eis que Fulana me roça.
Mas não quero nada disso.
Para que chatear fulana?
Pancada na sua nuca
Na minha que vai doer
E daí não sou criança
Fulana estudo meu rosto
Coitado: de raça branca
Tadinho: tinha gravata
Olho: não tem mais Fulana.
Povo se rindo de mim.
(na curva do seu sapato
O calcanhar rosa e puro.)
E são onze horas da noite,
São onze rodas de choe,
Onze vezes dei a volta
De minha sede; e Fulana
Talvez dance no cassino
Ou, e será mais provável,
Talvez beije no Leblon,
Talvez se banhe na Cólquida;
Talvez se pinte no espelho
Do táxi; talvez aplauda
Certa peça miserável
Num teatro barroco e louco;
Talvez cruze a perna e beba,
Talvez corte figurinhas,
Talvez fume de piteira,
Talvez ria, talvez minta.
Esse insuportável riso
De Fulana de mil dentes
(anúncio de dentifrício)
É faca me escavando.
Já morto, me quererá?
Esconjuro, se é necrófila..
Fulana é vida, ama as flores,
As artérias e as debêntures.
Sei que jamais me perdoara
Matar-me para ervi-la.
Fulana quer homens fortes,
Couraçados, invasores.
Fulana é toda dinâmica,
Tem um motor na barriga.
Suas unhas são elétricas,
Seus beijos refrigerados,
Desinfetados, gravados
Em máquina multilite.
Fulana, como é sadia!
Os enfermos somos nós,
Sou eu, o poeta precário
Que fez de Fulana um mito,
Nutrindo-me de Petrarca,
Ronsar, Camões e Capim;
E nessa fase gloriosa,
De contradições extintas
Eu e Fulana, abrasados,
Queremos... que mais queremos?
E digo a Fulana: Amiga,
Afinal nos compreendemos.
Já não sofro, já não brilhas,
Mas somos a mesma coisa
(Uma coisa tão diversa
Da que pensava que fôssemos.) .
..........
Escrevemos nossos passos. Minha prima, não tem mais o hábito de escrever como fazia na adolescência, mas afirmou: O tempo voou e continua voando, é como ler um livro e achar que determinada frase foi escrita para algo que estava no meu eu e até então, meu eu não tinha percebido que sempre estivera e estará lá...
Como os atores puderam decorar todo aquele texto? ...Tantas falas e encenações em tão pouco tempo! - me perguntou e logo após prosseguiu - O tempo voou, e nem percebi, então é sinal que o que assisti foi bom, e muito melhor do que aquilo que às vezes é tão divulgado em termos de "OBA! OBA (geral)." Logo após me dispus a fazer uma breve pesquisa sobre o poema de Carlos Drummond de Andrade*, e encontrei um material na net, POESIA SOBRE O AMOR (por Sergius Gonzaga) , que coincidiu com as minhas reflexões:
Trecho (...) CDA* talvez seja a voz lírica/amorosa mais rica e complexa da literatura brasileira. Há em sua poesia uma inesgotável variedade de visões e abordagens do fenômeno afetivo, tanto nos aspectos espirituais quanto nos eróticos.
No entanto, em A rosa do povo a questão amorosa ocupa espaço mínimo, registrando-se apenas um poema de assunto estritamente sentimental: O mito. Verdade que não seria equivocado enquadrar O caso do vestido nesta vertente, mas por razões que veremos adiante, preferimos inseri-lo na categoria dos poemas sobre o cotidiano.
O mito O único poema de amor é também o único da obra escrito sob a ótica do humor. O procedimento humorístico exerce uma função corrosiva, pondo em xeque todos os valores humanos. E o humor já aparece no título do poema, porque a palavra mito tem um amplo espectro semântico. Primeiramente, o mito em questão parece indicar a mulher pela qual o poeta mostra-se obcecado: um ser ideal, de quem o amante (platônico) sequer sabe o nome:
Sequer conheço Fulana
vejo Fulana tão curto,
Fulana jamais me vê,
mas como eu amo Fulana.
O segundo sentido de mito é o da paixão romântica, que, nos últimos séculos, percorreu a cultura ocidental, aprofundando a sensibilidade dos indivíduos e gerando neles expectativas de felicidade que só se realizam com o triunfo do “grande amor”. E este sentimentalismo quase doentio e grotesco é que delimita o comportamento do poeta:
Amo Fulana tão forte,
amo Fulana tão dor,
que todo me despedaço
e choro, menino, choro.
Allheia à paixão que causa, (como freqüentemente ocorre com as heroínas românticas), Fulana segue sua vida repleta de festas, encontros, atividades esportivas. Fala palavras da moda: “marxismo, rimmel, gás”. É rica, “tem latifúndios, iates”. Numa deliciosa hipérbole, o poeta chega a afirmar que Fulana “sustenta cinco mil pobres”. Enquanto esta dama de agitada existência (uma legítima socialite) prossegue em seu cotidiano burguês, o amante – que ela ignora – vive imerso em desejos e ilusões que expressam o desespero típico dos apaixonados não correspondidos. A dicção dos versos, no entanto, não apresenta a seriedade, por vezes melodramática, do discurso amoroso convencional. O tom humorístico corrói o que poderia haver de solene ou pungente:
Amor tão disparatado.
Desbaratado é que é...
Nunca a sentei no meu colo
nem vi pela fechadura.
Em dado momento, ele chega a duvidar da concretude de sua musa:
Mas Fulana será gente?!
Estará somente em ópera?
Será figura de livro?
tem coxas reais! Cintura?
Em trinta e oito estrofes de quatro versos regulares (sete sílabas) – todas revestidas pela ironia sutil de CDA – acompanhamos a trajetória delirante deste ser exasperado pelo tormento da paixão. A incerteza, os ciúmes e as dúvidas que roem os amantes infelizes tornam ainda mais tragicômica a busca do poeta. O enamoramento cria ânsias ardentes que jamais se realizam. Em seu desassossego, ele até imagina o próprio suicídio, simplesmente para que seu cadáver decomposto fedesse à frente do apartamento de Fulana e assim quebrasse a indiferença da mulher. Estamos, portanto, na situação limite da mitologia romântica que atribui à camada sentimental a razão única da existência.
No entanto, uma imprevista guinada acontece nas sete estrofes finais (e mais um dístico) que fecham o poema. A dicção humorística cede lugar à seriedade. O poeta interrompe o canto engraçado de seus desalentos e substitui a Fulana real por uma outra imaginária, que aceita a efetivação amorosa. Os enamorados – ainda no plano da fantasia do poeta – são projetados para um universo harmonioso e justo, para que nenhum drama social possa interromper ou turvar o êxtase de sua paixão:
E colocamos os dados
de um mundo sem classe e imposto;
e nesse mundo instalamos
os nossos irmãos vingados.
O amor, então, se concretiza:
E nessa fase gloriosa,
de contradições extintas,
eu e Fulana, abrasados,
queremos... que mais queremos!
Porém, todo o ardor dos amantes, toda a exaltação entusiástica do desejo, toda a ânsia pelo outro convertem-se, após a consecução afetivo-erótica, em outra coisa:
E digo a Fulana: Amiga,
afinal nos compreendemos.
Já não sofro, já não brilhas,
mas somos a mesma coisa.
(Uma coisa tão diversa
da que pensava que fôssemos.)
Ao nomear a amada simplesmente de “amiga”, o poeta implode a intensidade emocional que conferira às estrofes finais do poema. Fulana não é mais uma deusa, uma criatura mítica. Ela que brilhava, ela, mulher definitiva do mundo, ser de exceção, irredutivelmente singular como são todos os seres que amamos, ela, de quem cada detalhe, cada gesto, cada palavra o poeta extraía mil ressonâncias, a única mulher capaz de lhe dar prazer, alegria e vida, agora é apenas uma “amiga”!
O sofrimento gozoso dos apaixonados desaparece e aquilo que fazia do objeto da devoção um mito (um ser superior) já não existe. “Somos a mesma coisa”, somos iguais. O estado de suspensão da vida comum (estado próximo da loucura, do desespero e do ridículo) – característica do enamoramento – é substituído pela amizade trivial. Nos versos derradeiros, o desejo intenso (dor, pulsação, febre, assombro) transforma-se em melancólica tranqüilidade. E mito – observe o giro semântico sofrido pela palavra dentro do poema – passa a designar a paixão no que ela possui de ilusão, de fantasia perseguida e derrotada pela realidade. (...) (*)
Enfim, a BOA COMPANHIA DE TEATRO, conseguiu concretizar tirar do papel os sentimentos de um Universo poético. Quem vive a Poesia "sofre" por ter que aprender a lidar com a hipersensibilidade, uma asa quebrada acaba amparando outra para que se possa rir e chorar sozinho...
FINAL FELIZ: Há de se adquirir um senso Canastrão para se (re)conhecer até onde se pode chegar o jogo de CANASTRA: cair do buraco, saber como se levantar e sair vivo dele (com muito bom humor, nas doses de dor e amor e por que não romantismo?!). A palavra lua tanto usada como "metáfora" para alguns de nós (poetinhas), estava encarnada no palco, no meio de quatro homens (sóis) sendo "cantada" com tanta delicadeza uma visão inesquecível... Vale a pena ver!
A pena vale a pena, amigos da Arte.
Daqui, meus novos aplausos!!!
Rosangela Aliberti
17 maio 2007
_______
(*) Fonte: http://educaterra.terra.com.br/literatura/livrodomes/2002/12/27/001.htm